29/01/2011
Ano 14 - Número 720

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"Amigo da Cultura"

 


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BRUNO KAMPEL

 

 

 
Bruno Kampel



27 de janeiro: A ONU, o Holocausto, a Memória, o Esquecimento
 

Todo genocídio começa com um simples assassinato. Toda inundação tem sua origem numa primeira gota de água. Antissemitismo, por essa razão, não é apenas o resultado que provoca, mas principalmente o motivo que o gera.

O nazismo é um assustador bicho-papão, a maior ignomínia praticada no século XX, e para os judeus, a pior catástrofe humana de uma longa História, ainda que não a única.

A magnitude do resultado provocado por essa ideologia intolerante é tamanha, que ainda condiciona - tanto a judeus quanto a quem não o é - em quase tudo, mesmo que como sistema político o nazismo não mais exista.

O nacional-socialismo não teria sido imaginável sem os 2.000 anos de catequese anti-semita. Portanto, o nazismo como expressão do ódio em relação aos judeus não é apenas um instante fugaz da História, como muitos gostam de simplificar, mas o produto de uma tenaz campanha milenária contra o deus dos judeus, contra os escritores do Livro (Torá/Bíblia) e a favor dos que o plagiaram, degenerando - por analogia - em condutas intolerantes em relação a tudo que signifique judaismo.

Quando essa "ideologia" conseguiu o apoio logístico de outros países (Suécia vendendo carvão, Suíça protegendo os capitais roubados, Argentina vendendo carne e trigo, Itália e Japão aliando-se, Espanha e Portugal apoiando abertamente, e muitos, mas muitos países olhando para o outro lado, é que se transformou no que se transformou.

Como bem diagnosticam os psicólogos, o difícil é matar a primeira vez. Depois, sai da frente!...

Não é minha intenção usar este espaço para tentar definir o que seja o nazismo, pois o que realmente desejo é tratar de explicar e ao mesmo tempo procurar entender a razão pela qual nos últimos anos estamos ouvindo com insistência insuportável a comparação de sionismo com nazismo ou de judaísmo com nazismo ou de Netaniahu com Hitler ou do exército de Israel com a Gestapo.

Não faz muitos anos que lemos numa revista de circulação nacional (Caros Amigos) um artiguete de um "jornalista" libanês residente no Brasil, no qual declarava que os judeus foram os maiores aliados dos nazistas, e, acreditem, até hoje nada lhe aconteceu do ponto de vista legal por ter difamado de forma tão caluniosa ao povo judeu e conspurcado a memória dos seis milhões de mártires do Holocausto.

A verdade é que quase todos os judeus - muito ou pouco sionistas, muito ou apenas esquerdistas, muito ou nada religiosos - conhecem ou adivinham o estilo e o hábito da extrema direita, seja ela a austríaca ou a peruana, a judaica ou a cristã, de sempre ver um inimigo no contrincante, um canalha no oponente, um traidor em quem não equaciona a realidade como eles o fazem, porque a demonização de todos e de tudo que se oponha à sua visão do mundo faz parte do seu decálogo.

Isto posto, e considerando seriamente as declarações de certos líderes fundamentalistas judeus, as quais contam com o apoio por ação ou omissão de alguns (muitos) membros do atual governo de Israel e de certas instituições comunitárias na diáspora, criminalizando a todo o povo palestino pelos atos de uma parcela minoritária de fanáticos inescrupulosos, e ao povo árabe em geral pelo apoio ou omissão de muitos dos seus líderes aos atos praticados por esses criminosos, não nos resta senão constatar que nos enfrentamos à acusação de que o governo de Israel e seus prepostos estariam usando métodos similares aos implementados pelos nazistas, e o que é pior, e o que desespera, é a constatação de que muitas vezes e ante determinados atos praticados pelos políticos e/ou pelas forças armadas de Israel, ficamos sem ouvir uma resposta adequadamente contundente e crível a tão terrível acusação.

Os meios de comunicação de todo o mundo - usando uma parcialidade peculiar e lastimável - mostram obsessivamente cenas de soldados de Israel marcando palestinos no braço, ou aviões bombardeando universidades ou chutando a porta e entrando atirando em casas onde depois se constata que lá estavam apenas mulheres e crianças. E isso, queira-se ou não, gera opinião pública antagônica, em primeiro lugar porque se trata de fatos reais e não de simples montagens, e principalmente porque não podemos exigir de uma população totalmente desconhecedora dos antecedentes do conflito, da complexidade do cenário e das nuances e ideologias envolvidas, que não fique à mercê da mensagem que diariamente recebe dos meios de comunicação. E se ainda somarmos a tudo isso o componente da herança genética do antissemitismo milenar, temos então o quadro completo.

Nenhuma emissora de TV deixa de gravar quando os soldados de Israel impedem a circulação das ambulâncias palestinas, nem suspende a transmissão dos bombardeios de cidades onde - a priori - a maioria da população é formada por civis alheios ao desenrolar dos ataques e contra-ataques. Mas infelizmente, os atentados suicidas ou os efeitos dos foguetes Kassam "pousando" dentro das fronteiras reconhecidas de Israel sobre casas de inocentes provocados pela outra parte não ocorrem frente às câmeras da CNN ou congêneres, e essa visão unilateral repetida em todas as notícias de todos os canais e publicadas em todas as manchetes de todos os jornais, ajuda a sedimentar na consciência dos cidadãos telespectadores-leitores a antipatia contra nós.

Enfim, o problema existe, e olhar para o outro lado só fará com que ele aumente.

O primeiro passo que o bom senso nos obriga a dar como humanistas (judeus ou não) é condenar com veemência e em manchetes de primeira página toda e qualquer pessoa representativa e/ou grupos políticos ou religiosos de Israel ou da diáspora que adotem posições públicas francamente desprezíveis, como por exemplo a canalhice de que foram capazes alguns "judeus" (entre eles não poucos "rabinos") de aplaudir quando Igal Amir assassinou a Itzhak Rabin (assisti um programa na BBC de Londres com gente dos assentamentos dizendo enquanto dançavam de alegria, que havia sido Mitzvá - um preceito e/ou mandamento - , e que o rabino deles determinara que era a vontade de deus de punir aos traidores).

Igualmente terrível foi o silêncio quando um assassino chamado Baruch Goldstein fuzilou a 29 pessoas dentro de uma mesquita em Hebron, não porque fossem assassinas ou terroristas em ação, mas porque o seu rabino, e por conseguinte a sua comunidade nos territórios ocupados, vivem de alimentar o ódio a tudo que não seja intolerância fundamentalista, ao ponto de que hoje há no assentamento um monumento em honra desse canalha, para onde peregrinam não poucos seguidores dessa linha de ódio e intolerância.

Da mesma forma, é sintomática a omissão quando se permite sem chiar nem piar a criação de guetos onde se reclui à população dona da terra enquanto que estrangeiros (israelenses) ocupam o que não lhes pertence (partes da Judéia e Samária, Gaza, Golan, etc.).

Todos esses atos espúrios ficaram sem uma resposta adequada. Nenhuma Instituição Comunitária oficial publicou manifestos contra a atitude geradora de antissemitismo dessas instâncias, e esse silêncio, queiramos ou não, é entendido pela disforme e manipulável opinião pública como uma aceitação. É o tal do bumerangue no seu caminho de retorno.

Ante tal estado de coisas, temos a inadiável obrigação ética de declarar de viva voz que o fato de que o povo judeu tenha sido vítima dessa ignomínia não o credencia para praticá-la.

Esse o peso e essa a medida que devemos usar para exigir uma conduta humanista ao governo de Israel (e se o tema deste artigo fosse a Palestina, usaria as mesmas palavras para julgar a conduta da Autoridade Nacional Palestina).

Também essas consignas podem servir de base para que as instituições comunitárias no Brasil lembrem sempre que elas em primeiro lugar representam aos judeus brasileiros e não ao governo de Israel, e que o principal interesse delas é a proteção da integridade física e moral dos membros das comunidades que dirigem.

Devemos denunciar ante o governo de Israel e ante todas os estamentos políticos, jurídicos e sociais - pedindo a sua imediata suspensão - o arraigado e ilegal mau hábito de aplicar a punição coletiva, ou seja, o castigo de grandes contingentes de inocentes, no caso, palestinos.

Exemplos não faltam. Um terrorista palestino põe uma bomba. Horas depois o exército de Israel explode a sua casa - que na verdade não é sua, pois é dos pais e nela moram outros 10 irmãos que não colocaram nenhuma bomba - mas não ocorre o mesmo com por exemplo a casa do assassino de Rabin, ou a dos pais do Baruch Goldstein, ou a de tantos soldados israelenses julgados ultimamente por vender armas e munições ao inimigo (na maioria dos casos tais atos são produto da miséria que aflige a uma parcela considerável da sociedade israelense, vítima de uma ordem de prioridades políticas que exaure as reservas do país em benefício dos assentamentos ilegais fora das fronteiras do Estado de Israel).

Como dizem os católicos, essa política faz que paguem justos por pecadores. E isso, convenhamos, transmitido em todos os canais, em todos os idiomas, gera anti-semitismo. Gostemos ou não.

Claro está que opor-se a essa conduta ilegal e inconstitucional não implica em inocentar ao terrorista que coloca uma bomba, nem muito menos a quem o preparou para fazê-lo, nem tampouco aos cúmplices por ação ou omissão de tamanha vilania, mas significa que não podemos aceitar a punição de coletivos cujo único pecado é rezarem a um d's diferente do nosso.

É questão sine qua non a prevalência por cima de interesses mesquinhos - sejam políticos, religiosos ou militares - da doutrina e dos princípios sobre os quais repousam os alicerces do Estado de Israel, e num desses pilares está escrito com o sangue dos heróis que morreram para garantir a construção de Israel, que um Estado de Direito em nenhum caso ou circunstância pode atuar como se fosse um grupo terrorista, pois assim agindo desmoraliza-se perante os seus cidadãos e deslegitima-se ante a comunidade internacional.

O tema realmente se presta para produzir páginas e mais páginas de discursos, longas e detalhadas análises históricas, belas e sugestivas propostas programáticas, mas não vejo que seja o momento mais recomendável para tais exercícios semânticos. Basta com o dito até aqui para confirmar que a "acusação" de nazista que muitos antissemitas e não poucos inocentes úteis fazem contra o governo atual de Israel - e por extensão imprópria contra todos os judeus - é profunda e absolutamente injusta e mentirosa quanto ao conteúdo, mas infelizmente, dolorosa e dificilmente contestável quanto ao continente.

Por isso cabe a nós - humanistas - o ônus e a responsabilidade da explicação. E para isso exige-se serenidade e clareza na hora de explicar a quem quiser ouvir que os judeus podem ser muitas coisas. Podem ser ricos ou muito ricos, pobres ou muito pobres. Podem ser juizes ou ladrões. Podem ser profetas ou proxenetas, justos ou pecadores, mas o que jamais poderão ser é nazistas, porque isso contradiz em essência o ADN e a pura e básica razão de existir do povo judeu.

Temos portanto a obrigação ética de separar o joio do trigo. E eu o faço usando a arma da palavra, que é a única que sou capaz de esgrimir, e escolho este púlpito para declarar a minha verdade perante um enorme grupo de leitores mais ou menos anônimos, mais ou menos amigos, e agindo assim trato de honrar a memória dos muitos que, transformados em fumaça, subiram pelas chaminés de Auschwitz ou de Treblinka enquanto o mundo "civilizado" dançava nos cabarés de moda ao som dos acordes de Lili Marlene.

Que cada um escolha as suas armas, mas que sejam instrumentos para construir pontes e não mais lenha para alimentar a fogueira.



(29 de janeiro/2011)
CooJornal no 720


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Suécia
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