(Tratarei de ser conciso na minha apresentação, que a consulta é muito
cara)
Para que tenha uma idéia do difícil ou do fácil que às vezes resulta tudo,
doutor: Sou o mesmo desde que nasci, mas também sou outro desde a mesma data.
Como um, atendo os assuntos quotidianos, e como o outro, oponho idéias às
minhas idéias. Às vezes o conflito é doloroso.
(O quê?... Bom, então deixo as divagações para mais tarde. Começo pelo início,
e pronto)
Comecei os meus estudos sobre o tudo e o nada (alias Vida), quando tinha dois
anos e quatro meses, ao tentar descobrir o que é que acontecia se enfiava um
garfo na tomada da parede. Foi a primeira lição que a vida me ensinou: garfo
na tomada = queimadura e lágrimas.
Depois veio a escola primária, na qual me ensinaram a obedecer sem questionar
e onde por conta própria aprendi a perguntar e desobedecer.
No curso secundário descobri como abrir janelas ainda que não existissem
janelas, e a supor que nada era como parecia ser, e a crer que a puberdade é a
penúltima estação antes do Nirvana.
A faculdade começou a me desensinar que saber é uma ilusão; que imaginar é um
teorema indemonstrável; que procurar é uma armadilha; que divergir é um
estigma, que aprender é um coitus interruptus.
Ler foi o meu melhor mestre. Entender foi o meu primeiro precipício.
À margem dos estudos regulares, a fome alheia soube azedar o sabor dos meus
almoços e jantares. O torturador ensinou-me com a sua arte que a dor não tem
limite; que é tão interminável como a falta de vergonha ou a ignorância ou o
fanatismo.
A injustiça foi clara na sua mensagem de que ela é mais forte que a mais forte
das boas intenções, e o desejo de vingança demonstrou ser o pai de todos os
abusos, e a corrupção a causa mortis de todos os governos.
O que não posso esquecer de dizer, doutor, é que pelo fato de aprender que a
lepra é a essência do Poder e a gangrena a marca registrada de quase todos os
governos de quase todos os países em quase todas as épocas, jamais deixei de
tentar injetar um pouco de vergonha na cara da lepra, e na gangrena igual dose
de cordura, e quanto aos desgovernos, sempre que foi possível os combati sem
que me tremessem os joelhos.
E assim, doutor, a vida foi mostrando as suas garras, despindo as suas
mentiras, destruindo os seus valores. E foi assim e por isso que acabei neste
divã, pagando para que me escute e me entenda, ainda que saiba que pouco lhe
importa o que escute e muito menos o que entenda, a não ser o preço que me
cobra por aceitar ouvir minhas angústias.
Mas não se engane, viu?.. Hoje, anos-luz de distância desses degraus da escada
que ainda subo, contemplo a vida e seus atores com a mesma curiosidade com que
outrora olhei a tomada elétrica e o garfo como se tivessem nascido o um para o
outro. Aprendo a decifrar a vida com igual intensidade com a qual somava
experiência e diminuía obediência. Procuro o sentido no fundo do mais profundo
semsentido com similar avidez à que alguma vez usei para pesquisar com o rabo
dos olhos o decote das minhas virgens preferidas.
De todo esse aprender e desaprender; de todo esse saber para esquecer; de todo
esse Ser e não apenas Estar, sobram – escondidos na bainha do Presente – um
amontoado de palavras; um ramalhete de idéias; um batalhão de projetos, que
tento lapidar em frases que façam sentido; em textos que sejam profundos; em
mensagens que tenham essência.
Ainda que quase nunca consiga ordenar as palavras; ainda que quase nunca
alcance a implementar minhas idéias; ainda que quase nunca chegue a
desenvolver meus projetos, não desisto, mas insisto e começo de novo. E assim
sucessivamente.
(O quê?... Ah! Tinha esquecido que com vocês da escola psocoanalítica do Lacan
(em contraste com a escola Freudiana) a consulta é cada vez mais curta e o
preço é cada vez mais alto). Bom... Na próxima quinta-feira às 18:32:21?... )
(21 de março/2009)
CooJornal
no 624