14/07/2007
Ano 10 - Número 537

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel



O passado, presente

 

 

(Isto escrevi há bastantes anos. Creio que para a eleição que ganhou o FHC.
Penso que serve para hoje, e para amanhã, e para o ano que vem, e....)
 

MAYDAY! MAYDAY! MAYDAY!...


Dia de eleições. Dia de gala para Brasilásio Espantoso, tupiniquim pelos quatro costados. Por isso pulou da cama cedo, pois queria aproveitar o dia festivo desde o primeiro cocorocó com que o galo inaugurara o amanhecer da magna data.

Após o banho de chuveiro escolheu roupas leves, predominando nelas os tons verde e amarelo, num arrebato de cafonice patriótica que tomava conta dele toda vez que ocorria uma das seguintes alternativas: quando jogava um time brasileiro contra outro estrangeiro (seja futebol ou bolinha de gude ou cuspe à distância ou qualquer coisa, pois assim havia sido amestrado desde pequeno) ou quando era chamado a cumprir com seus deveres cívicos, como neste caso.

Tomou o desjejum às pressas, engolindo o pão com margarina e geléia quase sem mastigar, temendo perder o início da votação, pois havia prometido a si mesmo que seria o primeiro a recitar nas urnas um verso de fé nos destinos do Brasil. Bra-sil! Bra-sil! Bra-siiiiil!.

Antes de sair, porém, deu um estalo na cabeça do Brasilásio. Uma campainha de alarme badalou os sinos no território semi letárgico da sua consciência matutina, fazendo-o parar de supetão antes de abrir a porta. E parou, enquanto que a realidade - que impaciente o esperava do lado de fora - dava à luz, num parto inesperado, a uma bela e robusta dúvida que exigia aos berros ser devidamente esclarecida: em quem votar?...

A verdade é que tinha estado tão ocupado tentando convencer ao seu salário de não fazer cerimônia e ficar mais um pouco, que não lhe havia sobrado tempo para escolher àquele que merecesse ser o depositário do seu voto de confiança.

Ante a dúvida, decidiu que seria preferível atrasar um pouco a saída para analisar e pesar com calma os prós e os contras de cada um dos participantes da contenda eleitoral, do que sair às pressas e votar no primeiro nome que lhe ocorresse, ou, pior ainda, no daquele em que a rede Globo investira todo o poderio dos seus meios de comunicação tentando hipnotizar à enorme massa de crédulos que de quatro em quatro anos vota como se estivesse escolhendo o ator principal da próxima novela das oito, e não o gestor dos destinos do país.

Decisão tomada, dirigiu-se até à cozinha, abriu a geladeira, e deu uma espiadela dentro da gaveta do congelador, pois era lá que armazenava tudo aquilo que achava pudesse vir a servir-lhe como referência no futuro.

Retirou a gaveta e levou-a até a pequena mesa de jantar, no canto da sala, onde começou a pesquisar-lhe o conteúdo.

O primeiro achado - congelado de dar frio só de olhar - foi o grito do Ipiranga. Na verdade, não fosse a sua memória prodigiosa, e Brasilásio não o teria reconhecido. Parecia um traste sem valia, um alarido mudo, um eco silencioso de melhores tempos. Nada restara do garbo do tal brado retumbante, a não ser um ar de impotência de dar pena.

A seguir apanhou o pacote cujo rótulo dizia Democracia, e quase caiu para atrás: mesmo congelada até os ossos da alma, a tal da democracia "made in Brazil" fedia que não se agüentava nem chegar perto.

Continuou a exploração, e no fundo do fundo da gaveta encontrou as caixas que continham os perfis dos candidatos à presidência. Bastou-lhe uma olhadela rápida nas etiquetas para constatar que os dois principais adversários estavam com a data de validade vencida.

O que dizia representar à esquerda, só era apto para consumo dos ingênuos, porque estava na cara que não pretendia cumprir as promessas fundamentais do seu programa eleitoral. Percebiam-se claramente as teias de aranha, tecidas com capricho e paciência ao longo das décadas, habitando todos os cantos dos seus princípios e valores, já que não atualizara o seu ideário, oferecendo aos eleitores as mesmas soluções que serviram faz quase um século, mas que certamente não atendem às expectativas do novo milênio, e principalmente, não apontam nenhuma solução para que o Brasil possa livrar-se da lacra dos intermediários e dos políticos corruptos e dos juízes de aluguel.

O outro, o que fazia alarde de ser o fiel representante das idéias da social-democracia moderna e progressista, mas que na verdade estava alinhado nas filas da direita mais retrógrada, tinha caducado desde que ficara definitivamente provado que a chamada globalização da economia apenas beneficia aos grandes grupos econômicos, não só perpetuando a miséria nos países pobres, mas aumentando-a até limites insuspeitados e insuportáveis.

Brasilásio constatou que realmente tratava-se de um enfrentamento - muito mais do que entre pessoas - entre duas visões de mundo antagônicas, anacrônicas e inadequadas, tanto se consideradas desde o ponto de vista da realidade brasileira - em geral - como se analisadas levando-se em conta os anseios, desejos e esperanças da maioria esmagadora dos cidadãos - em particular.

A proposta da esquerda esclerosada e defasada, ao querer distribuir riqueza sem antes preocupar-se em gerá-la, e concentrando os serviços básicos e os grandes meios de produção nas mãos inoperantes e geneticamente corruptas do Estado, conduz inexoravelmente ao suicídio; e a da direita, querendo concentrar a riqueza sem se importar com o custo social do capitalismo sem fronteiras, impõe a pena de pobreza coletiva a todos os que não pertençam ao elitista clube dos industriais, dos políticos, dos grandes comerciantes, dos empreiteiros e dos intermediários. Em qualquer uma das hipóteses - pensou desanimado - o povo brasileiro perde de goleada.

Bastou-lhe apenas um instante de reflexão para notar que ambos os candidatos insistiam nos mesmos chavões que usaram todos os seus predecessores em todas as campanhas eleitorais, tais como justiça social, educação e saúde para todos, combate à corrupção, fim da violência policial, melhor redistribuição da renda, eliminação da miséria, redução da pobreza, encolhimento da inflação sem custos sociais excessivos para as classes menos favorecidas, aumento do nível de emprego, diminuição do déficit fiscal, e outras frases de efeito que, se bem estavam na bula do remédio que ambos receitavam, Brasilásio sabia muito bem que nada mais eram do que belas e sensuais odaliscas, usadas com o intuito inconfesso de distrair a atenção dos eleitores para assim poder vender aos inúmeros incautos que caírem na cilada, uma grande mentira que não oferece ao comprador nenhuma garantia, servindo apenas como isca para pescar votos no mar de ignorância e ingenuidade em que diariamente se afogam as esperanças do povo brasileiro.

Quanto aos outros candidatos - os pequenos pacotinhos - estavam todos condenados ao fracasso, não necessariamente por merecê-lo, mas por serem apenas os pequenos pacotinhos. Só o tempo dirá se algum deles possui as características inerentes àqueles que aspiram transformar-se numa opção real no cardápio político do Brasil. Por enquanto, apenas pacotinhos sem qualquer peso específico.

Olhando uma e outra vez para todos os embrulhos, embrulhinhos e “embrulhões” espalhados sobre a pequena mesa de jantar - muitos dos quais começando a dar sinais de quererem descongelar - Brasilásio Espantoso finalmente tomou uma decisão política, a primeira que a vida lhe exigira, e que o deixava com apenas uma alternativa. Dolorosa, inadiável e intransferível.

Pois é. Além de não ter votado, usando o dia feriado para ajudar a esgotar o estoque de chope do boteco da beira da praia, no dia seguinte foi visto tentando convencer o cônsul da Itália que o seu tataravô materno era natural da região da Toscana, e que por isso tinha direito a emigrar para lá e adquirir legal e imediatamente a nacionalidade italiana.

Se o conseguiu, não foi possível averiguá-lo, mas o que sim se soube é que o patriotismo do Brasilásio morreu de amor não correspondido. Que a sua esperança - dizem os que a conheceram - faleceu de vergonha, enquanto que a sua confiança nos destinos da pátria nunca mais foi vista pelos arredores. E dele propriamente dito nunca mais se ouviu falar, nem se sabe de alguém que conheça o seu atual paradeiro. Seu último sinal de vida foi um anúncio por ele publicado nos classificados do Globo, vendendo geladeira em bom estado. De concreto, apenas sobrou esta anedota, que mesmo não passando de ser cópia fiel da realidade - do que dou fé - pode também ser interpretada como uma dura, crua, dolorosa e brasileiríssima fantasia. Ou vice-versa.
 



(14 de julho/2007)
CooJornal no 537


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bruno.kampel@gmail.com  
Antologia cibernética: http://bruno.kampel.com
Revista Poetika: http://poetika.kampel.com
Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br
Blog sobre Israel/Palestina: http://shalomshalom.blogger.com.br