30/06/2007
Ano 10 -
Número 535
ARQUIVO
BRUNO KAMPEL
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Bruno Kampel
Reta final
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No dia em que descobri que a experiência tinha deixado suas impressões
digitais sobre a minha capacidade de ver e entender a realidade, convidei-me
para uma conversa a dois na qual falaríamos de tudo e de todos.
O cenário escolhido era uma noite invernal ao meio dia (paradoxo escandinavo),
na qual a neve recusava derreter-se e o frio inundava com lufadas de medo esse
palco cheio de anos e de contas pendentes que desde uma esquina da Suécia numa
esquina da minha vida exigiam um projeto de futuro que não fosse um simples
deixar que os anos se evaporem sem sequer tê-los tocado, sem apenas feri-los,
sem simplesmente gastá-los.
Olhando então para atrás vi que desde lá fitavam-me de soslaio pedaços de mim
de todas as cores com todas as suas verdades e mentiras, com todas as suas
respostas e fracassos, e então, num gesto filho da experiência os recolhi e os
depositei na conta corrente da minha vida, enquanto decidia de uma vez e para
sempre atapetar o caminho dos anos que me esperam na virada dos dias, com
perguntas que me apontem o caminho, com ações que demonstrem que respiro, com
desejos que alimentem o sentido da minha vida.
Não sei se foram horas. Não sei o que foram. Nem sei se foram, mas sei que o
que tenha sido ficou resumido em poucas palavras que a partir de então
alimentam a minha fortaleza interior e o meu equilíbrio emocional enquanto
deslizo suavemente pelo escorrega da terceira idade.
1.- Se tenho que escolher entre calar ou gritar, grito, porque calar é
renunciar.
2.- Quando devo optar entre o papo ameno e o debate aceso, escolho o segundo,
porque renunciar ao confronto de idéias é escolher o silêncio, e ele é um
péssimo conselheiro para os que já passaram a barreira dos cinqüenta.
3.- No caso de ter que mentir para que me aceitem, pois então que não me
aceitem, porque fingir depois dos cinqüenta é um pecado quase mortal. É
preferível que não me queiram como sou do que ter que inventar a quem não sou
para que me queiram.
4.- Se mesmo sabendo tenho que dizer que não sei para que quem não sabe pense
que sabe mais do que eu, ou dizer o que sei ainda que os ouvintes pensem que
não sei o que estou dizendo, escolho o segundo, porque prefiro que me odeiem
pelo que sei a que me amem pela minha ignorância.
5.- Se os que me escutam ou lêem não sabem separar o debate do convívio, a
briga do consenso, e transformam adversários circunstanciais em inimigos
definitivos, não tenho mais remédio do que continuar sendo como sou, porque se
deixasse de sê-lo trairia a todos os anos que somados me trouxeram até o
Presente.
6.- Noutras palavras, desse papo entre Mim e Eu nasceu a pessoa que sou hoje.
Adulto, mas jovem. Quase idoso, porém adolescente. Lutador, mas cavalheiro.
São essas as armas que uso para lutar contra o pior inimigo dos que passamos
dos cinqüenta: a velhice. Sim, porque a paz depois dos cinqüenta - essa que se
nutre de beijos e abraços, de salamaleques e carícias, de amigos e muito
amigos, sem conflitos nem debates nem brigas nem gritos nem um pouquinho de
sal nas feridas - é a pura e terrífica velhice. É a paz dos cemitérios, tão
cantada em prosa e verso.
É por tudo isso e muito mais que sempre que posso atuo como o jovem que me
habita, porque a idade afeta o corpo e não à criança que também somos, e
deixar que os anos amordacem a esse infante rebelde é cair prisioneiro da
velhice.
Tenho certeza que morrerei jovem, ainda que o corpo seja muito mas muito
velho.
Tomara vocês também.
(c) Bruno Kampel
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INSENSATEZ
Ellen morreu uma morte tão prevista como imprevista. Uma morte sem manchetes;
nem sequer o consabido anúncio fúnebre pago pelos colegas de turma como manda
o protocolo em casos como esse, em que a morta tem 22 anos e alguns meses.
Ao receber a notícia de que Ellen não mais pagaria a mensalidade por razões de
força muito maior do que todas as palavras, o Seguro de Saúde da defunta
suspira aliviado. Não mais biopsias nem consultas nem partos normais ou
prematuros. Não mais contas a pagar. Não mais Ellen.
Ellen morreu uma morte burocrática. Arquive-se então o seu falecimento, que há
outros candidatos circulando por todas as esquinas de todas as cidades.
Futuros mortos que esperam a luz verde do destino para deitar-se nas páginas
do registro policial ou hospitalar e exalar o ultimo suspiro por causa da bala
perdida ou do motorista alcoolizado ou do cateter esquecido bem dentro dele
pelo médico que como sempre estava mais interessado nas pernas da enfermeira
do que na vida que dele dependia, e tudo isso para glória e maior lucro do
Seguro de Saúde, que num gesto de respeito aos mortos mais ou menos inocentes,
mais ou menos jovens, mais ou menos vítimas, mais ou menos assassinados,
decreta num memorando circunspecto que seus nomes sejam registrados e
enterrados no panteão oficial dos casos resolvidos.
Na janela desde a qual vigia uma das esquinas mais movimentadas, o Seguro de
Saúde vibra e faz as contas enquanto vislumbra olhando entre as persianas uma
enxurrada de clientes indo e vindo entre pivetes cheios de giletes e
motoristas carregados de pressa e desrespeito, adivinhando que cada um em cada
sinal vermelho reza ao seu deus de estimação pedindo apenas que não lhe chegue
a hora de morrer prematuramente.
No Seguro de Saúde a campainha do telefone executa o seu melódico estribilho e
uma voz sensual acaricia o ouvido da telefonista comunicando a quem interessar
possa aquilo que para todos os interessados não é mais nenhuma novidade: que
Ellen jamais conhecerá o resultado da sua própria autópsia.
Digam vocês a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade: não dá uma
vontade danada de jogar uma pedra na janela do Seguro de Saúde?...
(30 de junho/2007)
CooJornal
no 535
Bruno Kampel é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bruno.kampel@gmail.com
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