... como sempre ocorre de ano em
ano, cada um dos incontáveis meninos de rua abraçar-se-á ao sinal luminoso de
uma das muitas esquinas de sua mãe adotiva, e festejará a magna data
partilhando com os seus irmãos de desventura e rejeição alguns talharins
confiscados do fundo da lata de lixo onde a opulência alheia depõe as sobras
orgânicas do seu egoísmo, e depois brindará com água da poça pela felicidade
de todas as ruas, de todos os becos, de todas as ladeiras, de todas as
estradas e avenidas, até que o sono o vença, e a velha criança que o habita –
num passe de mágica digno do melhor dos ilusionistas - transforme um par de
folhas amarrotadas do caderno de economia do jornal da véspera, em lençol e
cobertor, e sem o afago materno ou o copo de leite ou o beijo na testa como
fecho de ouro desse dia, e sem sequer poder apagar a luz do farol e o reflexo
da lua e das estrelas que insistem em iluminar a sua dilacerante solidão, ou
amortecer o chiado dos pneus dos carros na virada da esquina, ou os gritos de
alegria que abandonam as janelas dos apartamentos e invadem os seus ouvidos
órfãos de palavras de carinho, deitar-se-á sobre os restos mortais de todos os
seus sonhos, e abraçando-se à sua desesperança hereditária e vitalícia, se
transformará - numa metamorfose provocada pelo cansaço milenar que lhe fecha
os olhos - no ator principal dos seus pesadelos infantis, tendo como público a
um desnutrido batalhão de ratos e vira-latas e piolhos, e como palco a fria,
asfaltada e poluída saia da mãe-rua, ama-seca honoris causa de todas as
crianças expulsas do paraíso pela injustiça social que dita as regras do jogo
inventado por aqueles que tudo podem e tudo querem e com tudo ficam.
Boi... Boi... Boi... Boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de
careta...
(06 de maio/2006)
CooJornal
no 475