Aos mais amigos e aos menos
Amigos,
Ainda que faltem algumas semanas para a chegada da nossa Páscoa, conto-lhes
que já estou preparando-me para comemorar essa data que nos diz tanto.
Farei o mesmo que costumo fazer desde que moro tão longe dos meus afetos:
jantarei acompanhado de um monte de cadeiras vazias, ainda que neste ano farei
de conta que o meu pai – a despeito de estar ausente para sempre segundo o
regulamento da vida e da morte – dirige os “trabalhos” do Seder, e a minha
mãe, que também se foi, se dedique de corpo e alma a verificar e certificar
que não ficou na casa nem sequer uma amostra grátis de “hametz” que possa
macular a tradição milenar, e que todos os meus irmãos também estejam, como
quando crianças, preparados para a tarefa “sagrada” de esperar nervosamente o
momento de procurar, achar e roubar o afikoman para depois negociar um resgate
satisfatório.
Sim, ainda que não se trate de nada mais do que de um simples exercício de
imaginação, eu também terei o meu seider de Pésach “kasher le mehadrin”
(respeitando as regras da pureza). Um verdadeiro Seder virtual.
Deixarei três cadeiras pelas dúvidas de que a Paz e o Bom Senso e a Concórdia
aceitem o convite e sentem novamente junto à mesa onde vive e alimenta o corpo
e o espírito o povo de Israel.
Já remeti convites irrecusáveis às minhas lembranças mais prezadas, para que
os meus avós maternos e paternos possam ter tempo de preparar a viagem desde o
nunca mais e se juntem a nós, e, como não poderia deixar de ser, deixarei
também uma cadeira para a criança que fui e que desde um cantinho secreto da
minha vida ainda teima em dizer o que pensa, porque quero que ela aprenda de
memória esta metáfora tão importante da epopéia do nosso povo.
Convidarei o meu computador a partilhar a noite conosco, porque assim poderá
transmitir para todos aqueles que não possam vir, o itinerário da viagem que
faremos por todas as estações gastronômicas e históricas dessa noite tão
especial.
Aos queridos amigos, aos honoráveis adversários – virtuais ou reais – que
conheço ou desconheço, que me conhecem ou não, digo-lhes que desde já se
considerem convidados a sentar na minha própria cadeira, porque nessa noite
seremos – todos - uma só entidade, herdeira universal de milênios de fé, de
séculos de solidariedade e de esperança, e que podem ser resumidos nas poucas
palavras que nos conduziram através da diáspora com sua Inquisição e o seu
Holocausto, até os dias de hoje: Shaná habaá birushalaim (no ano que vem em
Jerusalém).
Só espero que não ocorra o acontecido no ano passado, quando escondi tão bem
escondido o afikoman, que até o dia de hoje ninguém o encontrou, e por isso
ficamos todos – eu e as minhas lembranças, eu e os meus mortos queridos – sem
poder beber a terceira taça para agradecer o jantar. Deve ser por causa disso
que quando abri a porta nada do Elias aparecer e entrar. Tomara que neste ano
o amargor da harosset (ervas amargas), seja o prólogo do mel definitivo e o
epílogo de todos os males, para nós e para todo o povo de Israel. Amem.
Bruno Kampel. Judeu, agnóstico, sionista. Graças a d’’s.
(08 de abril/2006)
CooJornal
no 471