08/04/2006
Número - 471

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel



Pesach

 

Aos mais amigos e aos menos Amigos,


Ainda que faltem algumas semanas para a chegada da nossa Páscoa, conto-lhes que já estou preparando-me para comemorar essa data que nos diz tanto.

Farei o mesmo que costumo fazer desde que moro tão longe dos meus afetos: jantarei acompanhado de um monte de cadeiras vazias, ainda que neste ano farei de conta que o meu pai – a despeito de estar ausente para sempre segundo o regulamento da vida e da morte – dirige os “trabalhos” do Seder, e a minha mãe, que também se foi, se dedique de corpo e alma a verificar e certificar que não ficou na casa nem sequer uma amostra grátis de “hametz” que possa macular a tradição milenar, e que todos os meus irmãos também estejam, como quando crianças, preparados para a tarefa “sagrada” de esperar nervosamente o momento de procurar, achar e roubar o afikoman para depois negociar um resgate satisfatório.

Sim, ainda que não se trate de nada mais do que de um simples exercício de imaginação, eu também terei o meu seider de Pésach “kasher le mehadrin” (respeitando as regras da pureza). Um verdadeiro Seder virtual.

Deixarei três cadeiras pelas dúvidas de que a Paz e o Bom Senso e a Concórdia aceitem o convite e sentem novamente junto à mesa onde vive e alimenta o corpo e o espírito o povo de Israel.

Já remeti convites irrecusáveis às minhas lembranças mais prezadas, para que os meus avós maternos e paternos possam ter tempo de preparar a viagem desde o nunca mais e se juntem a nós, e, como não poderia deixar de ser, deixarei também uma cadeira para a criança que fui e que desde um cantinho secreto da minha vida ainda teima em dizer o que pensa, porque quero que ela aprenda de memória esta metáfora tão importante da epopéia do nosso povo.

Convidarei o meu computador a partilhar a noite conosco, porque assim poderá transmitir para todos aqueles que não possam vir, o itinerário da viagem que faremos por todas as estações gastronômicas e históricas dessa noite tão especial.

Aos queridos amigos, aos honoráveis adversários – virtuais ou reais – que conheço ou desconheço, que me conhecem ou não, digo-lhes que desde já se considerem convidados a sentar na minha própria cadeira, porque nessa noite seremos – todos - uma só entidade, herdeira universal de milênios de fé, de séculos de solidariedade e de esperança, e que podem ser resumidos nas poucas palavras que nos conduziram através da diáspora com sua Inquisição e o seu Holocausto, até os dias de hoje: Shaná habaá birushalaim (no ano que vem em Jerusalém).

Só espero que não ocorra o acontecido no ano passado, quando escondi tão bem escondido o afikoman, que até o dia de hoje ninguém o encontrou, e por isso ficamos todos – eu e as minhas lembranças, eu e os meus mortos queridos – sem poder beber a terceira taça para agradecer o jantar. Deve ser por causa disso que quando abri a porta nada do Elias aparecer e entrar. Tomara que neste ano o amargor da harosset (ervas amargas), seja o prólogo do mel definitivo e o epílogo de todos os males, para nós e para todo o povo de Israel. Amem.

Bruno Kampel. Judeu, agnóstico, sionista. Graças a d’’s.



(08 de abril/2006)
CooJornal no 471


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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