Ao longo dos últimos quatro meses
fomos testemunhas das reações em cadeia geradas pela publicação de 12
caricaturas ofensivas do profeta Maomé num jornal da Dinamarca.
Hoje, depois de que dois ou três jornais europeus se animassem a publicar
essas caricaturas, a reação tem sido muito forte dentro do coletivo muçulmano
no mundo, e não seria de estranhar que ditas reações terminassem por chegar ao
ponto de gerar e derramar sangue inocente.
A mim o que mais incomoda em toda essa história é o silêncio do Establishment
judeu ante essa ofensa.
Sim, nós, que durante séculos sofremos as caricaturas mais indignas, com os
longos narizes cheios de meleca exposta; os sobretudos negros bem sujos e
cujos bolsos apareciam cheios do dinheiro alheio, etc., e que hoje, ante
qualquer publicação em qualquer jornal ou jornaleco de qualquer povoado
situado em qualquer país de qualquer continente, nos valemos do poder dos
nossos “lobbies”, do dinheiro dos nossos milionários, da influencia dos nossos
banqueiros, da fidelidade dos nossos amigos, para condenar o ataque
anti-semita (assim consideramos – e com toda razão – qualquer caricatura que
despreze a figura dos judeus como tais ou que manuseiem os nossos símbolos),
exigindo e conseguindo a punição imediata de quem se atreveu a ofender a nossa
sensibilidade coletiva, e até forçando o fechamento do jornal que se atreveu a
dar cabida a essa ofensa, e exigindo e geralmente recebendo, pedidos formais
de desculpas de ministros, generais, diretores e proprietários de jornais e
até presidentes e primeiros-ministros, a cada vez que algum anti-semita faz
valer o seu “direito à livre expressão” para injuriar a uma comunidade
inteira: a nossa.
Nada, absolutamente nada – e muito menos a mal usada liberdade de imprensa –
outorga a alguém o direito a injuriar e o poder de difamar sem medo a receber
o merecido castigo. E é isso o que essas caricaturas fazem, porque não
refletem o Mulá ou o Imã Xis ou Épsilon que esteja atuando fora do âmbito das
suas competências religiosas, ainda que valendo-se delas para produzir a morte
de inocentes, mas do máximo objeto de veneração (por baixo apenas de seu deus)
do povo muçulmano: o profeta Maomé.
Não resta dúvida que a intenção foi pura e simplesmente a de confundir a
opinião pública, misturando conceitos antagônicos como se fossem uma só coisa,
tentando assim impor a idéia de que não apenas o mula Omar ou Ussama Bin Laden
ou al-Sadr são os inimigos a derrotar, mas todo o Islã. A bomba no turbante de
Maomé é a melhor prova de que a intenção é infame.
E nós os judeus, tão acostumados ao longo da História a nos vermos refletidos
como a fonte de todos os males, já seja através de homilias (que não passavam
de ser caricaturas orais) até as conhecidas caricaturas, nas quais o banqueiro
usurário era sempre um judeu com cara de mau, ou as que apresentavam aos
judeus como os responsáveis pela epidemia de febre amarela na Europa, ou as do
judeu com o nariz enorme e olhos injetados roubando o pão do pobre camponês,
optamos por calar ante esse atropelo racista que ocorre hoje e agora em
relação aos muçulmanos.
Muito poucas autoridades rabínicas deixaram ouvir a sua voz de protesto ante
essa bastarda forma de insultar a mais de um bilhão de crente espalhados pelo
mundo. Proibido esquecer que o nosso deus é o mesmo que o deles.
Nenhuma autoridade israelense ou das comunidades da diáspora abriu a boca para
declarar que o povo judeu – vítima de igual trato ao longo de um par de
milênios – se solidariza com o povo muçulmano ante esse lixo gráfico que hoje
serve de bandeira aos racistas.
Nenhum articulista judeu dos muitos que publicam na Internet a sua opinião
teve a preocupação de dizer que isso é pura baixaria, porque da mesma forma em
que os judeus não éramos os responsáveis pela fome no mundo ou pela peste
bubônica ou pela usura bancária, tampouco o povo muçulmano leva uma bomba no
turbante ou o ódio na cartola.
O fato de que os muçulmanos fanáticos usem em vão o nome do seu deus e do seu
profeta para cometer as suas barbáries – essas que estão muito além de toda
compreensão humana – não dá a ninguém o direito de globalizar a resposta,
sujando com agravos cheios de intolerância a fé alheia e o bom nome de um povo
inteiro. A maioria dos muçulmanos é composta de gente que o único que deseja é
paz, comida e felicidade. Como todos os povos.
Algum de vocês imagina se o Le Figaro da França ou o Die Welt germânico ou o
Washington Post estadunidense, publicara 12 caricaturas da virgem Maria
praticando o sexo com o arcanjo Gabriel?... O Vaticano e/ou os fieis católicos
seriam passivos ante tal publicação?
Algum de vocês imagina se o Le Monde parisiense ou o Politiken dinamarquês ou
O Globo brasileiro, publicasse 12 caricaturas com rabinos participando de uma
orgia homossexual?... A Fundação Wiesenthal ou o Congresso Judaico Mundial ou
a FIERJ ou a FIESP ou a Knésset olhariam para outro lado?...
Lamentavelmente, olhar para o outro lado é o que até agora estamos fazendo os
judeus. Consentimos, valendo-nos de um silêncio intolerável. Deixamos que se
misture ódio aos terroristas com a religião que usam como escudo. E isso,
amigos, não é digno nem augura nada de bom.
Armazenamos em nosso arquivo genético, demasiadas caricaturas, mofas,
infâmias, persecuções, como para permitir-nos o exercício da omissão quando
vemos que similares caricaturas, semelhantes mofas, idênticas calúnias, são
usadas contra o povo muçulmano.
Ou rompemos em pedaços esse silêncio insuportável, ou nos transformamos em
cúmplices daqueles que - não faz muito tempo - nos transformaram em vítimas.
(25 de março/2006)
CooJornal
no 469