25/03/2006
Número - 469

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel



UM SILENCIO INTOLERÁVEL
 

 

Ao longo dos últimos quatro meses fomos testemunhas das reações em cadeia geradas pela publicação de 12 caricaturas ofensivas do profeta Maomé num jornal da Dinamarca.

Hoje, depois de que dois ou três jornais europeus se animassem a publicar essas caricaturas, a reação tem sido muito forte dentro do coletivo muçulmano no mundo, e não seria de estranhar que ditas reações terminassem por chegar ao ponto de gerar e derramar sangue inocente.

A mim o que mais incomoda em toda essa história é o silêncio do Establishment judeu ante essa ofensa.

Sim, nós, que durante séculos sofremos as caricaturas mais indignas, com os longos narizes cheios de meleca exposta; os sobretudos negros bem sujos e cujos bolsos apareciam cheios do dinheiro alheio, etc., e que hoje, ante qualquer publicação em qualquer jornal ou jornaleco de qualquer povoado situado em qualquer país de qualquer continente, nos valemos do poder dos nossos “lobbies”, do dinheiro dos nossos milionários, da influencia dos nossos banqueiros, da fidelidade dos nossos amigos, para condenar o ataque anti-semita (assim consideramos – e com toda razão – qualquer caricatura que despreze a figura dos judeus como tais ou que manuseiem os nossos símbolos), exigindo e conseguindo a punição imediata de quem se atreveu a ofender a nossa sensibilidade coletiva, e até forçando o fechamento do jornal que se atreveu a dar cabida a essa ofensa, e exigindo e geralmente recebendo, pedidos formais de desculpas de ministros, generais, diretores e proprietários de jornais e até presidentes e primeiros-ministros, a cada vez que algum anti-semita faz valer o seu “direito à livre expressão” para injuriar a uma comunidade inteira: a nossa.

Nada, absolutamente nada – e muito menos a mal usada liberdade de imprensa – outorga a alguém o direito a injuriar e o poder de difamar sem medo a receber o merecido castigo. E é isso o que essas caricaturas fazem, porque não refletem o Mulá ou o Imã Xis ou Épsilon que esteja atuando fora do âmbito das suas competências religiosas, ainda que valendo-se delas para produzir a morte de inocentes, mas do máximo objeto de veneração (por baixo apenas de seu deus) do povo muçulmano: o profeta Maomé.

Não resta dúvida que a intenção foi pura e simplesmente a de confundir a opinião pública, misturando conceitos antagônicos como se fossem uma só coisa, tentando assim impor a idéia de que não apenas o mula Omar ou Ussama Bin Laden ou al-Sadr são os inimigos a derrotar, mas todo o Islã. A bomba no turbante de Maomé é a melhor prova de que a intenção é infame.

E nós os judeus, tão acostumados ao longo da História a nos vermos refletidos como a fonte de todos os males, já seja através de homilias (que não passavam de ser caricaturas orais) até as conhecidas caricaturas, nas quais o banqueiro usurário era sempre um judeu com cara de mau, ou as que apresentavam aos judeus como os responsáveis pela epidemia de febre amarela na Europa, ou as do judeu com o nariz enorme e olhos injetados roubando o pão do pobre camponês, optamos por calar ante esse atropelo racista que ocorre hoje e agora em relação aos muçulmanos.

Muito poucas autoridades rabínicas deixaram ouvir a sua voz de protesto ante essa bastarda forma de insultar a mais de um bilhão de crente espalhados pelo mundo. Proibido esquecer que o nosso deus é o mesmo que o deles.

Nenhuma autoridade israelense ou das comunidades da diáspora abriu a boca para declarar que o povo judeu – vítima de igual trato ao longo de um par de milênios – se solidariza com o povo muçulmano ante esse lixo gráfico que hoje serve de bandeira aos racistas.

Nenhum articulista judeu dos muitos que publicam na Internet a sua opinião teve a preocupação de dizer que isso é pura baixaria, porque da mesma forma em que os judeus não éramos os responsáveis pela fome no mundo ou pela peste bubônica ou pela usura bancária, tampouco o povo muçulmano leva uma bomba no turbante ou o ódio na cartola.

O fato de que os muçulmanos fanáticos usem em vão o nome do seu deus e do seu profeta para cometer as suas barbáries – essas que estão muito além de toda compreensão humana – não dá a ninguém o direito de globalizar a resposta, sujando com agravos cheios de intolerância a fé alheia e o bom nome de um povo inteiro. A maioria dos muçulmanos é composta de gente que o único que deseja é paz, comida e felicidade. Como todos os povos.

Algum de vocês imagina se o Le Figaro da França ou o Die Welt germânico ou o Washington Post estadunidense, publicara 12 caricaturas da virgem Maria praticando o sexo com o arcanjo Gabriel?... O Vaticano e/ou os fieis católicos seriam passivos ante tal publicação?

Algum de vocês imagina se o Le Monde parisiense ou o Politiken dinamarquês ou O Globo brasileiro, publicasse 12 caricaturas com rabinos participando de uma orgia homossexual?... A Fundação Wiesenthal ou o Congresso Judaico Mundial ou a FIERJ ou a FIESP ou a Knésset olhariam para outro lado?...

Lamentavelmente, olhar para o outro lado é o que até agora estamos fazendo os judeus. Consentimos, valendo-nos de um silêncio intolerável. Deixamos que se misture ódio aos terroristas com a religião que usam como escudo. E isso, amigos, não é digno nem augura nada de bom.

Armazenamos em nosso arquivo genético, demasiadas caricaturas, mofas, infâmias, persecuções, como para permitir-nos o exercício da omissão quando vemos que similares caricaturas, semelhantes mofas, idênticas calúnias, são usadas contra o povo muçulmano.

Ou rompemos em pedaços esse silêncio insuportável, ou nos transformamos em cúmplices daqueles que - não faz muito tempo - nos transformaram em vítimas.


(25 de março/2006)
CooJornal no 469


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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