25/02/2006
Número - 465

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel



LER É O MELHOR REMÉDIO

 

O primeiro livro que li de ponta a ponta sem ter chegado a entendê-lo a fundo, mas adivinhando o que não sabia, chamava-se Ana. Tratava-se de um livro de carne e osso cujas páginas eram dedos macios e lábios carnosos e cavernas profundas e altíssimas montanhas que me ensinavam lições imperecedouras.

Desde o mesmíssimo prólogo e até o ponto final, era um puro aprender a viver. Cada frase pronunciada pelas carícias dos seus dedos provocava pele de galinha em todos os meus sentidos, e cada parágrafo que o suor escrevia sobre a epiderme da minha ingenuidade, quase sempre terminava num maremoto de suspiros de alegria. Cada capítulo era um convite irrecusável para visitar o seguinte, e assim discorria o enredo até desmaiar de tanto ler e ser lido.

Acho que à Ana a li quase todas as tardes dos meus treze anos, enquanto os pombos que aninhavam na magnólia nos olhavam com curiosidade pela janela entreaberta da varanda, provavelmente tentando aprender a ler como nós o fazíamos.

Hoje, sim, hoje, após tantos anos, lustros, décadas, frases, parágrafos e capítulos protagonizados por mim ao longo da vida, sei com certeza que nos muitos livros que li, leio e lerei, sempre procurava procuro e procurarei nas entrelinhas das suas pernas, entre as frases das suas coxas, sobre os capítulos dos seus seios, sob a encadernação elétrica dos seus orgasmos, à Ana que li em prosa e verso e que entendi sem palavras que a explicassem. Devo reconhecer que quase a encontrei algumas vezes em outros livros. Não mais do que quase.

Deve ser por isso que todos os livros são para mim apenas um, ainda que traduzido à linguagem particular de cada uma das suas autoras. Todas as entrepernas me ensinam a mesma e repetida lição, e todas as vezes que leio e entendo a mensagem, sinto por um instante como se voltasse a ter treze anos em flor e fosse o verdadeiro autor e único leitor da sinfonia vital escrita sobre as páginas em branco da minha puberdade.



(25 de fevereiro/2006)
CooJornal no 465


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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