18/02/2006
Número - 464

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel



 CARICATURA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

 

Permitam que discorde discordância irreconciliável, de todos aqueles que atribuem à liberdade de expressão o direito inalienável que têm todos os jornais de publicarem as caricaturas de Maomé.

Em primeiro lugar – e de acordo ao meu sentir, saber e entender – tal publicação não se ampara na liberdade de expressão, mas muito pelo contrário, a degrada, pois faz uso dela para gerar opinião pública antagônica ao Islã (discriminação explicitamente proibida na Carta das Nações Unidas), e não contra algum dos seus líderes locais ou contra pequenos ou grandes grupos de enlouquecidos fundamentalistas que aninham no seu seio. A bomba no turbante de Maomé deixa de ser uma simples caricatura e se transforma numa aberrante, injusta e subliminar acusação contra toda a religião muçulmana (discriminação explicitamente proibida na Carta das Nações Unidas). E isso não é liberdade, mas política, digna de um Le Pen ou de um Goebbels, mas não de um jornal cuja função é informar sem deformar e publicar sem denegrir.

A liberdade de expressão não é nem pode ser um salvo-conduto com o qual se possa viajar desde a verdade até a infâmia, transitando pela mentira e a difamação, mas é e devera continuar sendo uma conquista que protege o nosso direito de dizer o que pensamos, atacando idéias sem medo a sermos punidos; combatendo ideologias sem o risco de sermos presos; questionando dogmas religiosos sem temer a reação dos crentes desses dogmas que questionamos, mas nunca, jamais, aproveitar-se dela para generalizar condutas individuais, criminalizando o todo e não a parte, como é o caso em tela.

Não é um segredo que à sombra das religiões frutificaram guerras; floresceram cruzadas: germinaram inquisições e holocaustos que hoje – a posteriori - o mundo civilizado condena com vigor, mas enquanto essas aberrações foram incubadas, paridas e amamentadas pela generalidade dos fieis e/ou com o beneplácito das máximas autoridades religiosas e/ou políticas, o terrorismo islâmico dos dias de hoje é absolutamente minoritário dentro do universo de fieis desse credo.

Tampouco é um segredo o fato de que se está em fase de orquestração de uma feroz campanha contra essa religião, organizada por setores do cristianismo e do judaísmo e da extrema-direita laica, todas tão intolerantes quanto os grupos de fanáticos que usam o nome de Alá, do seu profeta, e os símbolos dessa religião, para suas barbáries assassinas. Sim, é a tal guerra de civilizações iniciando os seus trabalhos de parto.

Concordo que o racismo e a xenofobia que imperam na Dinamarca e na Holanda (se comparamos a sua força com os mesmos sentimentos existentes, por exemplo, na Suíça ou na Suécia, estes dois últimos países seriam considerados um modelo de virtude e de convívio, ainda que saibamos que não o são) foram os estopins e a razão principal pela qual tal assunto não morresse na praia, como tantos outros. E foi esse racismo e essa intolerância, bem enraizados na Europa comunitária, que serviram de caixa de ressonância e leitmotiv, e não a liberdade de expressão. Neste caso, essa liberdade de expressão está sendo usada e manuseada para alcançar fins racistas e de hegemonia da cultura ocidental sobre a cultura muçulmana.

Lluis Foix, um jornalista catalão de La Vanguardia de Barcelona, escrevia, há um par de dias, que o problema é que a Europa vive como se deus não existisse, e os muçulmanos vivem como se Ele existisse. Esse abismo é intransponível. Nem a Europa voltará a ajoelhar-se perante os altares, nem os muçulmanos deixarão de fazê-lo.

Como todo judeu com memória, recuso-me a esquecer que o nazismo começou com algumas caricaturas. E muito me temo que haja uma escalada brutal – ainda que progressiva – neste conflito.

Penso que neste caso em particular, os que apóiam a publicação por um lado e os que a condenamos pelo outro, estamos defendendo a liberdade de expressão, ainda que tenhamos escolhido caminhos diversos e armas diferentes.

Só saberemos a quem coube a razão, quando possamos analisar friamente os estragos que tais caricaturas produziram no tênue tecido das relações entre as sociedades hoje enfrentadas nesse pega-pra-capar em que se transformou o assunto.



(18 de fevereiro/2006)
CooJornal no 464


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bruno.kampel@gmail.com  
Antologia cibernética: http://bruno.kampel.com
Revista Poetika: http://poetika.kampel.com
Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br
Blog sobre Israel/Palestina: http://shalomshalom.blogger.com.br