Permitam que discorde
discordância irreconciliável, de todos aqueles que atribuem à liberdade de
expressão o direito inalienável que têm todos os jornais de publicarem as
caricaturas de Maomé.
Em primeiro lugar – e de acordo ao meu sentir, saber e entender – tal
publicação não se ampara na liberdade de expressão, mas muito pelo contrário,
a degrada, pois faz uso dela para gerar opinião pública antagônica ao Islã
(discriminação explicitamente proibida na Carta das Nações Unidas), e não
contra algum dos seus líderes locais ou contra pequenos ou grandes grupos de
enlouquecidos fundamentalistas que aninham no seu seio. A bomba no turbante de
Maomé deixa de ser uma simples caricatura e se transforma numa aberrante,
injusta e subliminar acusação contra toda a religião muçulmana (discriminação
explicitamente proibida na Carta das Nações Unidas). E isso não é liberdade,
mas política, digna de um Le Pen ou de um Goebbels, mas não de um jornal cuja
função é informar sem deformar e publicar sem denegrir.
A liberdade de expressão não é nem pode ser um salvo-conduto com o qual se
possa viajar desde a verdade até a infâmia, transitando pela mentira e a
difamação, mas é e devera continuar sendo uma conquista que protege o nosso
direito de dizer o que pensamos, atacando idéias sem medo a sermos punidos;
combatendo ideologias sem o risco de sermos presos; questionando dogmas
religiosos sem temer a reação dos crentes desses dogmas que questionamos, mas
nunca, jamais, aproveitar-se dela para generalizar condutas individuais,
criminalizando o todo e não a parte, como é o caso em tela.
Não é um segredo que à sombra das religiões frutificaram guerras; floresceram
cruzadas: germinaram inquisições e holocaustos que hoje – a posteriori - o
mundo civilizado condena com vigor, mas enquanto essas aberrações foram
incubadas, paridas e amamentadas pela generalidade dos fieis e/ou com o
beneplácito das máximas autoridades religiosas e/ou políticas, o terrorismo
islâmico dos dias de hoje é absolutamente minoritário dentro do universo de
fieis desse credo.
Tampouco é um segredo o fato de que se está em fase de orquestração de uma
feroz campanha contra essa religião, organizada por setores do cristianismo e
do judaísmo e da extrema-direita laica, todas tão intolerantes quanto os
grupos de fanáticos que usam o nome de Alá, do seu profeta, e os símbolos
dessa religião, para suas barbáries assassinas. Sim, é a tal guerra de
civilizações iniciando os seus trabalhos de parto.
Concordo que o racismo e a xenofobia que imperam na Dinamarca e na Holanda (se
comparamos a sua força com os mesmos sentimentos existentes, por exemplo, na
Suíça ou na Suécia, estes dois últimos países seriam considerados um modelo de
virtude e de convívio, ainda que saibamos que não o são) foram os estopins e a
razão principal pela qual tal assunto não morresse na praia, como tantos
outros. E foi esse racismo e essa intolerância, bem enraizados na Europa
comunitária, que serviram de caixa de ressonância e leitmotiv, e não a
liberdade de expressão. Neste caso, essa liberdade de expressão está sendo
usada e manuseada para alcançar fins racistas e de hegemonia da cultura
ocidental sobre a cultura muçulmana.
Lluis Foix, um jornalista catalão de La Vanguardia de Barcelona, escrevia, há
um par de dias, que o problema é que a Europa vive como se deus não existisse,
e os muçulmanos vivem como se Ele existisse. Esse abismo é intransponível. Nem
a Europa voltará a ajoelhar-se perante os altares, nem os muçulmanos deixarão
de fazê-lo.
Como todo judeu com memória, recuso-me a esquecer que o nazismo começou com
algumas caricaturas. E muito me temo que haja uma escalada brutal – ainda que
progressiva – neste conflito.
Penso que neste caso em particular, os que apóiam a publicação por um lado e
os que a condenamos pelo outro, estamos defendendo a liberdade de expressão,
ainda que tenhamos escolhido caminhos diversos e armas diferentes.
Só saberemos a quem coube a razão, quando possamos analisar friamente os
estragos que tais caricaturas produziram no tênue tecido das relações entre as
sociedades hoje enfrentadas nesse pega-pra-capar em que se transformou o
assunto.
(18 de fevereiro/2006)
CooJornal
no 464