DOS AUTOS
(DECLARAÇÃO DO ÚNICO IMPUTADO)
“Sr. Juiz:
Fui apenas uma testemunha ocular do crime. A madrugada olhava sem sequer
pestanejar o incesto cometido por segundos e minutos filhos de uma mesma hora,
enquanto a orquestra não executava nenhuma valsa acompanhando o obstinado e
rítmico latir do tique-taque do atropelo.
Num canto de um canto um grito contido brincava de esconde-esconde como se nada
anormal estivesse acontecendo, e uma pergunta sem dono não esperava resposta
porque o marechal do contra-senso ordenava em todos os canais a rendição
incondicional da verdade e seus asseclas.
Chovia sobre o leito no qual dormia nua a esperança, e uma pneumonia sem emprego
procurava a cumplicidade de um espirro que impedisse ao silêncio contar suas
vergonhas, e desde o teto aplaudiam as aranhas de outros tempos a despeito do
soluço que a cena lhes causava.
Desde o despertador a hora sete se anunciava tilintando convidando-me a começar
a bordar um novo dia. Aceitei o convite e depois, enquanto ensaboava as minhas
dúvidas na ducha de água fria, os restos imortais da noite fugiam de mansinho
suponho que tentando encontrar o esconderijo do crepúsculo.
Sr. Juiz: Declaro a minha total inocência ante a absurda acusação que me imputa
o estupro e posterior assassinato a sangue frio da noite antes aludida, já que
não sou nem chefe nem patrão das horas que partem, mas uma vítima mais desse
atropelo com que o tempo passa o tempo.
Solicito a V.Sa. que se atenha às provas e me isente de uma vez e para sempre
dessa injusta acusação, devolvendo-me o direito de poder continuar usando as
noites como ninho do meu cansaço e colchão das minhas insônias”.
Esta é a minha única verdade. Peço se faça JUSTIÇA.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Resumo da Sentença:
Considerando que… blablablablablabla…, e tendo em conta que… blablablabla…,
determino que não há crime sem corpo do delito, e por tanto sentencio que In
dubio pro reo. Arquive-se e salve-se quem puder.
_________________
FALÊNCIA NADA FRAUDULENTA
Ancorado bem no fundo da garganta, um monte de gritos não gritados. Na ponta da
língua um batalhão de palavrões impronunciados. Na memória um sem-fim de acertos
de contas natimortos.
Na verdade, tudo começou quando tentou sonorizar um alarido, mas o grito não se
fez estrondo.
E tudo continuou quando ordenou aos palavrões abandonar a toca, mas descobriu
que os palavrões não aceitam ordens.
E tudo terminou quando exigiu à memória que despachasse as contas para quem
corresponda recebê-las, mas a memória não levou em conta o seu pedido e o
arquivou entre as contas incobráveis.
Humilhado pela derrota nessa luta inglória contra si mesmo, e agindo como se
fosse gente, e gritando um silêncio de dar medo, e insultando com olhares e
cobrando com discursos que jamais serão ouvidos, assumiu finalmente o comando
total e derradeiro do seu fracasso imperdoável, apertando o gatilho por primeira
e última vez.
A data do seu sepultamento não será comunicada para não alterar os hábitos dos
seus credores e devedores. Ou sim, se essa tiver sido a sua última vontade.
_________________
RAIZ QUADRADA DE 28
(regra de três que prova que uma cicatriz é uma cicatriz
e nada más do que uma cicatriz)
Não saber é saber o sabor do dissabor. Como a ignorância do sábio ou a loucura
do sóbrio ou a cordura do ébrio.
Fomos macacos e o esquecemos, e agora transformamos pretéritos sons guturais em
modernos discursos acadêmicos e não entendemos a mensagem, porque continuamos
sendo símios de paletó e gravata.
Por isso a vida ladra e morde. Por isso a morte ganha e manda. Por isso as
guerras vão e vêm. Por isso o contra-senso é o capataz de todas as vitórias. Por
isso há dinossauros na Casa Branca. Por isso a mentira é a madrasta de todas as
verdades e a sem-vergonhice a filha de todos os governos e a infâmia é
santificada em todas as igrejas sinagogas e mesquitas.
O futuro?... Bom, quá-quá-quá... melhor mudar de assunto.
(22 de outubro/2005)
CooJornal
no 447