22/10/2005
Número - 447

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel


 Três gotas de fel


 

 DOS AUTOS
(DECLARAÇÃO DO ÚNICO IMPUTADO)



“Sr. Juiz:

Fui apenas uma testemunha ocular do crime. A madrugada olhava sem sequer pestanejar o incesto cometido por segundos e minutos filhos de uma mesma hora, enquanto a orquestra não executava nenhuma valsa acompanhando o obstinado e rítmico latir do tique-taque do atropelo.

Num canto de um canto um grito contido brincava de esconde-esconde como se nada anormal estivesse acontecendo, e uma pergunta sem dono não esperava resposta porque o marechal do contra-senso ordenava em todos os canais a rendição incondicional da verdade e seus asseclas.

Chovia sobre o leito no qual dormia nua a esperança, e uma pneumonia sem emprego procurava a cumplicidade de um espirro que impedisse ao silêncio contar suas vergonhas, e desde o teto aplaudiam as aranhas de outros tempos a despeito do soluço que a cena lhes causava.

Desde o despertador a hora sete se anunciava tilintando convidando-me a começar a bordar um novo dia. Aceitei o convite e depois, enquanto ensaboava as minhas dúvidas na ducha de água fria, os restos imortais da noite fugiam de mansinho suponho que tentando encontrar o esconderijo do crepúsculo.

Sr. Juiz: Declaro a minha total inocência ante a absurda acusação que me imputa o estupro e posterior assassinato a sangue frio da noite antes aludida, já que não sou nem chefe nem patrão das horas que partem, mas uma vítima mais desse atropelo com que o tempo passa o tempo.

Solicito a V.Sa. que se atenha às provas e me isente de uma vez e para sempre dessa injusta acusação, devolvendo-me o direito de poder continuar usando as noites como ninho do meu cansaço e colchão das minhas insônias”.

Esta é a minha única verdade. Peço se faça JUSTIÇA.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Resumo da Sentença:

Considerando que… blablablablablabla…, e tendo em conta que… blablablabla…, determino que não há crime sem corpo do delito, e por tanto sentencio que In dubio pro reo. Arquive-se e salve-se quem puder.

_________________

FALÊNCIA NADA FRAUDULENTA



Ancorado bem no fundo da garganta, um monte de gritos não gritados. Na ponta da língua um batalhão de palavrões impronunciados. Na memória um sem-fim de acertos de contas natimortos.

Na verdade, tudo começou quando tentou sonorizar um alarido, mas o grito não se fez estrondo.

E tudo continuou quando ordenou aos palavrões abandonar a toca, mas descobriu que os palavrões não aceitam ordens.

E tudo terminou quando exigiu à memória que despachasse as contas para quem corresponda recebê-las, mas a memória não levou em conta o seu pedido e o arquivou entre as contas incobráveis.

Humilhado pela derrota nessa luta inglória contra si mesmo, e agindo como se fosse gente, e gritando um silêncio de dar medo, e insultando com olhares e cobrando com discursos que jamais serão ouvidos, assumiu finalmente o comando total e derradeiro do seu fracasso imperdoável, apertando o gatilho por primeira e última vez.

A data do seu sepultamento não será comunicada para não alterar os hábitos dos seus credores e devedores. Ou sim, se essa tiver sido a sua última vontade.

 

_________________

RAIZ QUADRADA DE 28

(regra de três que prova que uma cicatriz é uma cicatriz
e nada más do que uma cicatriz)


Não saber é saber o sabor do dissabor. Como a ignorância do sábio ou a loucura do sóbrio ou a cordura do ébrio.

Fomos macacos e o esquecemos, e agora transformamos pretéritos sons guturais em modernos discursos acadêmicos e não entendemos a mensagem, porque continuamos sendo símios de paletó e gravata.

Por isso a vida ladra e morde. Por isso a morte ganha e manda. Por isso as guerras vão e vêm. Por isso o contra-senso é o capataz de todas as vitórias. Por isso há dinossauros na Casa Branca. Por isso a mentira é a madrasta de todas as verdades e a sem-vergonhice a filha de todos os governos e a infâmia é santificada em todas as igrejas sinagogas e mesquitas.

O futuro?... Bom, quá-quá-quá... melhor mudar de assunto.





(22 de outubro/2005)
CooJornal no 447


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bruno.kampel@gmail.com  
Antologia cibernética: http://bruno.kampel.com
Revista Poetika: http://poetika.kampel.com
Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br
Blog sobre Israel/Palestina: http://shalomshalom.blogger.com.br