08/10/2005
Número - 445

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel


O PAPEL DO PAPEL DE PAPEL OU PAPELĀO,
E O PAPEL OU PAPELĀO DO JORNALISTA
SOBRE O PAPEL DE PAPEL
 

Os que temos o hábito de escrever – sejam artigos para o jornal, poemas ou novelas, ensaios ou contos, e/ou ler mais do que apenas um pouco, aprendemos uma pura e simples verdade: o papel aceita tudo. Aceita tanto um poema de amor quanto uma declaração de guerra. O testemunho desesperador dos sobreviventes do Holocausto e na página seguinte a tese dos que dizem que Holocausto não houve.

O papel aceita tudo e mais ainda. Os Lusíadas de Camões e Mein Kampf de Hitler. Discursos em defesa da vida e anúncios dos fabricantes de armas. Votos de felicidade e sentenças condenatórias. A verdade e a mentira. A denúncia do crime e a defesa do mesmo.

Mas por sorte o papel não é nem auto-suficiente, nem o principal conteúdo de uma publicação, mas apenas o continente pelo qual transitam os assuntos; o cenário sobre o qual atuam as idéias; o jardim onde florescem as propostas; o púlpito desde o qual se rezam os discursos.

Lembro como se fosse hoje do momento em que escutei pela primeira vez que "o papel aceita tudo". Aconteceu numa ensolarada manhã de janeiro de 1969 quando o saudoso Mário Lago a pronunciou.

Compartilhávamos um pequeno quarto usado normalmente pelo cavalariço da estrebaria do Regimento Caetano de Faria, no Rio de Janeiro, onde estávamos presos, numa época na qual para os que agíamos contra a ditadura, estar preso era a melhor das duas únicas possibilidades, além, é claro, de estar solto, porque a alternativa era estar morto.

Não posso esquecer o momento em que Carlos Lacerda - que completava a trinca de detidos - ao ouvir a frase que o Mário deixara cair sobre o silêncio cheio de moscas que imperava no lugar, adicionou incontinenti: "Eu que o diga!..." e soltou uma gargalhada que fez que os cavalos que pastavam aos pés da janela da cela relinchassem de satisfação.



(08 de outubro/2005)
CooJornal no 445


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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