Os que temos o hábito de escrever – sejam artigos para o jornal, poemas ou
novelas, ensaios ou contos, e/ou ler mais do que apenas um pouco, aprendemos uma
pura e simples verdade: o papel aceita tudo. Aceita tanto um poema de amor
quanto uma declaração de guerra. O testemunho desesperador dos sobreviventes do
Holocausto e na página seguinte a tese dos que dizem que Holocausto não houve.
O papel aceita tudo e mais ainda. Os Lusíadas de Camões e Mein Kampf de Hitler.
Discursos em defesa da vida e anúncios dos fabricantes de armas.
Votos de felicidade e sentenças condenatórias. A verdade e a mentira. A denúncia do crime e a
defesa do mesmo.
Mas por sorte o papel não é nem auto-suficiente, nem o principal conteúdo de uma
publicação, mas apenas o continente pelo qual transitam os assuntos; o cenário
sobre o qual atuam as idéias; o jardim onde florescem as propostas; o púlpito
desde o qual se rezam os discursos.
Lembro como se fosse hoje do momento em que escutei pela primeira vez que "o
papel aceita tudo". Aconteceu numa ensolarada manhã de janeiro de 1969 quando o
saudoso Mário Lago a pronunciou.
Compartilhávamos um pequeno quarto usado normalmente pelo cavalariço da
estrebaria do Regimento Caetano de Faria, no Rio de Janeiro, onde estávamos
presos, numa época na qual para os que agíamos contra a ditadura, estar preso
era a melhor das duas únicas possibilidades, além, é claro, de estar solto,
porque a alternativa era estar morto.
Não posso esquecer o momento em que Carlos Lacerda - que completava a trinca de
detidos - ao ouvir a frase que o Mário deixara cair sobre o silêncio cheio de
moscas que imperava no lugar, adicionou incontinenti: "Eu que o diga!..." e
soltou uma gargalhada que fez que os cavalos que pastavam aos pés da janela da
cela relinchassem de satisfação.
(08 de outubro/2005)
CooJornal
no 445