Escrevo quando começa o 'desligamento' de Gaza. Portanto, mais do que
sobre fatos presentes, comentarei alguns já passados, alguma coisa sobre
as pessoas envolvidas, e farei um pouquinho de futurologia.
Todos nós sabemos que o dia de hoje começou há mais de 38 anos, com a
chamada Guerra dos Seis Dias, a qual, diga-se de passagem, foi iniciada
por Israel com a intenção de adiantar-se ao que os seus analistas
militares definiam como um imediato ataque de cinco exércitos árabes.
Essa guerra durou menos do que demora explicá-la, mas, infelizmente, os
seus efeitos são hoje moeda corrente em quase todos os conflitos urbi et
orbi.
A ocupação da margem ocidental do rio Jordão e da faixa de Gaza - que para
efeitos deste artigo chamarei genericamente de 'territórios' - foi uma
conseqüência de um ato de guerra legitimado pelas Convenções
internacionais, principalmente a de Genebra, levando-se em conta os
preparativos para o ataque de todos os exércitos da região prévios ao
ataque israelense, movimentos esses que eram do conhecimento de muitos dos
membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Ou seja, há muito
pouco ou quase nada a se objetar quanto ao direito de Israel de ter
invadido a soberania jordaniana e assumir o controle provisório de uma
parte da mesma.
A catástrofe, essa tragédia que até o dia de hoje continua matando judeus
e palestinos livres de qualquer culpa, começou logo depois, com a recusa
de Israel de cumprir TODOS os artigos e os parágrafos das mesmas leis e
dos mesmos tratados internacionais que lhe serviram de base jurídica na
hora de invadi-los e ocupá-los provisoriamente (fundamentalmente os que se
referem ao caráter provisório da ocupação, ao tratamento digno que deve
receber a população local, e, posteriormente, às resoluções do Conselho de
Segurança intimando a Israel a retirar-se e devolver a soberania ao
governo jordaniano).
Se e mil vezes se... Se Israel tivesse negociado com a Jordânia um ano ou
dois depois de finalizada a contenda, ou no pior dos casos, quando Beguin
e Sadat resolveram o problema do Sinai, não resta a menor dúvida de que o
Rei Hussein teria aceitado mudanças cosméticas da fronteira e um status de
soberania partilhada de Jerusalém (seja assinando um acordo - ou, se o
medo aos seus vizinhos fosse demasiado grande - 'olhando para o outro
lado').
Se isso tivesse ocorrido, se o problema palestino-israelense tivesse se
transformado num problema palestino-jordaniano, não acredito que o mundo
houvesse defendido tanto e com tanto ímpeto a causa palestina, porque -
bem o sabemos - jaz, na defesa exagerada e maximalista do direito a ter um
Estado independente, muito ódio ao país ocupante e anti-semitismo em
relação ao povo judeu.
Quem se lembrar do mês de setembro de 1970 (conhecido como 'setembro
negro'), quando o Rei Hussein atacou às guerrilhas palestinas comandadas
por Arafat e matou, em poucos dias, mais de 10.000 palestinos - a maioria
deles inocente - também lembrará que o mundo não tremeu de indignação nem
se exigiu, em todos os canais e jornais, a cabeça de Hussein. Sim, o mundo
mediu e pesou, mede e pesa, medirá e pesará, valendo-se de dois pesos e
duas medidas, uns manipulados para os amigos e outros para os inimigos.
Para prova, basta olhar como, mal e porcamente, sobrevive parte do povo
palestino no Líbano, no Iêmen, na Síria, no Egito, países onde não passam
de cidadãos de terceira, párias sem nenhum ou quase nenhum direito, sem
que o mundo ponha a boca no trombone ou se queimem bandeiras.
Proibido esquecer que o chamado povo palestino jamais teve um Estado ou
território próprio, já que sempre formou parte de Estados e territórios
maiores, governados ou regidos por líderes, monarcas ou ditadores
diferentes. Isso, evidentemente, não lhes tira o direito de desejá-lo, já
que se trata de um povo que merece ser dono do seu próprio destino, como
os curdos hoje e os judeus até 1948.
Bom, concluída a fase da ocupação, o exército de Israel dedicou-se a
fortificar pontos estratégicos nos territórios para se defender de
possíveis ataques. Assim começou o que hoje se denomina com toda justiça
como 'colonização ilegal' da margem ocidental do rio Jordão e da Faixa de
Gaza.
Primeiro chegaram jovens de ambos os sexos e casais recém formados - a
maioria deles membros do Mafdal de então, um partido religioso sionista
nada fundamentalista e bastante constitucionalista.
Depois, com a chegada da direita ao poder em 1977, mudou completamente o
perfil da ocupação civil e a sua explicação. O discurso deu um giro fatal
em direção à extrema direita política e ao fundamentalismo religioso,
deixando de lado os fundamentos de defesa até então usados (certamente
bastante frágeis, porque guardavam no seu intestino o germe da anexação) e
os substituindo por slogans nitidamente religiosos por um lado e pela
visão messiânica dos seus profetas pelo outro. E assim foi que chegamos ao
dia de hoje, quando parte considerável do povo do Estado de Israel -
vítima do medo de morrer à toa por um lado, e pelo outro de uma
manipulação informativa nada veraz e muito unilateral - contagiou-se dessa
insensatez e intolerância que não aceita nada que não seja o tudo para nós
e o nada para os outros.
Pouco a pouco, bala a bala, ação a reação, atentado suicida a assassinato
seletivo e coletivo, os direitos e os deveres juridicamente definidos
foram relegados a um segundo e terceiro plano, e apenas a mensagem
religiosa e/ou cívico maximalista, tinha e tem força de lei para essa
parte da sociedade que não reconhece o Estado de Israel como a máxima
instância, considerando que tal instância está no além, e que apenas os
seus rabinos são os fieis intérpretes da mesma. A terra ocupada
provisoriamente passou então a ser a terra prometida que povoa a geografia
do imaginário do povo judeu. E então começaram a morrer inocentes de um
lado e do outro, em nome do deus da vingança de cada um dos lados.
A necessidade de Israel de proteger os civis que, a pedido dos sucessivos
governos, mudaram-se para os territórios, fez que se decidisse
militarizá-los, transformando-os sem que essa tivesse sido a intenção
original, em objetivos de guerra, segundo a definição dos tratados e das
convenções internacional que versam sobre a matéria.
Todas as casas dos colonos dispunham e dispõem de armas e munições que, ao
longo dos anos, foram e ainda são utilizadas mais para o saque, a
intimidação, a expulsão, do que para a defesa da família. E pouco a pouco
ia reduzindo-se o direito de ir e vir da população local, impondo-se-lhe
barreiras desumanas, controles absurdos, ou expulsando famílias inteiras
das suas casas, e comunidades - au grand complet - dos seus povoados, e
tudo isso feito em nome da segurança daqueles que ilegalmente ocupavam a
terra alheia.
E assim transcorreram quase quatro décadas, com cada vez mais judeus mais
e mais fanáticos, ocupando cada vez mais e mais terra alheia, e
'desligando' cada vez mais e mais populações palestinas, cada vez mais e
mais humilhadas e radicalizadas. Não conheço melhor receita para que
aconteça o que de fato tal situação provocou com o passar dos anos, do que
esta.
A chegada de Sharon ao poder era, para todos os que o conheciam, um sinal
de alarme. Fomos muitos os que advertimos e escrevemos o que acreditávamos
fosse ocorrer, e basta apenas se ler o que foi publicado durante os
últimos anos, para comprovar que não erramos muito. Na verdade, quase não
erramos.
Repetir aqui opiniões sobre os governos de Sharon não cabe, já que seria
incorrer em redundâncias que não se inserem no objetivo deste artigo.
A minha principal intenção é atribuir a responsabilidade a todos os
governos israelenses que, ao longo de 38 anos, dedicaram-se a enganar
centenas de milhares de cidadãos, oferecendo-lhes o paraíso de Hebrón a
menos de uma hora de carro de Jerusalém, ou uma 'bíblica' (??) Gaza ou uma
sacra Ramallah, quando todos esses governos sabiam, muito bem, que a
ocupação dos territórios é um cheque sem fundos que pode demorar, mas
finalmente será devolvido ao emissor, porque está sacado contra um banco
celestial que primeiramente pediu concordata nos tempos da Inquisição,
para falir definitivamente no Holocausto.
Por isso é que devemos entender a dor dessas pessoas que hoje têm que
deixar as suas casas, já que muitos deles nasceram lá, e também os seus
filhos e até os seus netos, e nos solidarizarmos com essa dor, que é real
e profunda, e que não tem nada a ver com a dor dos que choram a retirada
como se fosse uma traição ao deus dos judeus.
Ainda que para os muitos que pensam como eu, esses 'desligados' tenham
usufruído ilegalmente algo que não lhes pertencia, não posso esquecer que
lá chegaram pela mão de todos os governos israelenses, aos quais pouco
importou o lado humano dessa ocupação sem fundo nem futuro. Pena que o
desligamento de Iamit não serviu como exemplo do que viria depois.
Não é hora de culpar às pessoas por não querer abandonar as suas casas -
ainda que tenham que fazê-lo por imperativo legal e democrático - porque,
gostemos ou não, para muitos deles esse é o seu lar. Sua única casa. Seu
único passado. Suas únicas lembranças, e ter que partir é sem dúvida
doloroso até não poder mais.
Espero sinceramente que os colonos 'desligados' possam refazer as suas
vidas dentro das fronteiras reconhecidas do Estado de Israel. Quem sabe, o
'mau pedaço' que estão atravessando os ajude a entender um pouco o que vai
pela cabeça do povo palestino, que desde 1967 tem sido 'desligado' das
suas casas sempre que o decidisse o exército de Israel, com povoados
inteiros 'transferidos' a outras regiões por igual razão.
O mais importante deste primeiro passo é que seja realmente o primeiro
passo, e não, como suponho seja o plano e o desejo de muitos - Sharon
incluído - o último passo.
Provavelmente, uma parte do 'barulho' atual dos fundamentalistas tenha por
objetivo transmitir a idéia de que, se para 'desligar' oito mil colonos quase se
chegou a uma guerra civil, que nem se sonhe em 'desligar' quase trezentos mil
colonos ilegais que moram na margem ocidental do Jordão.
Se assim for, a retirada de agora será uma enorme derrota e uma ameaça,
porque o mundo, incluídos todos os judeus humanistas e progressistas e
democratas e defensores de um Estado de Israel laico e livre, não se
conformará em cair numa armadilha dessa natureza.
É hora de começar a fazer as malas. Quanto antes, melhor para o sionismo,
para o Estado de Israel e para o povo judeu.
Nota do autor: Devido à natureza do tema, deixei de citar o papel dos
palestinos em todo este processo. Vale lembrar, para não pecar por
omissão, que os setores radicais, ou como se prefira chamá-los, os
fundamentalistas islâmicos transformaram-se, ao longo dos últimos anos,
nos grandes inimigos do povo e da causa palestina. Com amigos como eles,
ninguém precisa de inimigos.
(27 de agosto/2005)
CooJornal
no 439