27/08/2005
Número - 439

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel


GAZA,
ADEUS PARA SEMPRE

Escrevo quando começa o 'desligamento' de Gaza. Portanto, mais do que sobre fatos presentes, comentarei alguns já passados, alguma coisa sobre as pessoas envolvidas, e farei um pouquinho de futurologia.

Todos nós sabemos que o dia de hoje começou há mais de 38 anos, com a chamada Guerra dos Seis Dias, a qual, diga-se de passagem, foi iniciada por Israel com a intenção de adiantar-se ao que os seus analistas militares definiam como um imediato ataque de cinco exércitos árabes.

Essa guerra durou menos do que demora explicá-la, mas, infelizmente, os seus efeitos são hoje moeda corrente em quase todos os conflitos urbi et orbi.

A ocupação da margem ocidental do rio Jordão e da faixa de Gaza - que para efeitos deste artigo chamarei genericamente de 'territórios' - foi uma conseqüência de um ato de guerra legitimado pelas Convenções internacionais, principalmente a de Genebra, levando-se em conta os preparativos para o ataque de todos os exércitos da região prévios ao ataque israelense, movimentos esses que eram do conhecimento de muitos dos membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Ou seja, há muito pouco ou quase nada a se objetar quanto ao direito de Israel de ter invadido a soberania jordaniana e assumir o controle provisório de uma parte da mesma.

A catástrofe, essa tragédia que até o dia de hoje continua matando judeus e palestinos livres de qualquer culpa, começou logo depois, com a recusa de Israel de cumprir TODOS os artigos e os parágrafos das mesmas leis e dos mesmos tratados internacionais que lhe serviram de base jurídica na hora de invadi-los e ocupá-los provisoriamente (fundamentalmente os que se referem ao caráter provisório da ocupação, ao tratamento digno que deve receber a população local, e, posteriormente, às resoluções do Conselho de Segurança intimando a Israel a retirar-se e devolver a soberania ao governo jordaniano).

Se e mil vezes se... Se Israel tivesse negociado com a Jordânia um ano ou dois depois de finalizada a contenda, ou no pior dos casos, quando Beguin e Sadat resolveram o problema do Sinai, não resta a menor dúvida de que o Rei Hussein teria aceitado mudanças cosméticas da fronteira e um status de soberania partilhada de Jerusalém (seja assinando um acordo - ou, se o medo aos seus vizinhos fosse demasiado grande - 'olhando para o outro lado').

Se isso tivesse ocorrido, se o problema palestino-israelense tivesse se transformado num problema palestino-jordaniano, não acredito que o mundo houvesse defendido tanto e com tanto ímpeto a causa palestina, porque - bem o sabemos - jaz, na defesa exagerada e maximalista do direito a ter um Estado independente, muito ódio ao país ocupante e anti-semitismo em relação ao povo judeu.

Quem se lembrar do mês de setembro de 1970 (conhecido como 'setembro negro'), quando o Rei Hussein atacou às guerrilhas palestinas comandadas por Arafat e matou, em poucos dias, mais de 10.000 palestinos - a maioria deles inocente - também lembrará que o mundo não tremeu de indignação nem se exigiu, em todos os canais e jornais, a cabeça de Hussein. Sim, o mundo mediu e pesou, mede e pesa, medirá e pesará, valendo-se de dois pesos e duas medidas, uns manipulados para os amigos e outros para os inimigos. Para prova, basta olhar como, mal e porcamente, sobrevive parte do povo palestino no Líbano, no Iêmen, na Síria, no Egito, países onde não passam de cidadãos de terceira, párias sem nenhum ou quase nenhum direito, sem que o mundo ponha a boca no trombone ou se queimem bandeiras.

Proibido esquecer que o chamado povo palestino jamais teve um Estado ou território próprio, já que sempre formou parte de Estados e territórios maiores, governados ou regidos por líderes, monarcas ou ditadores diferentes. Isso, evidentemente, não lhes tira o direito de desejá-lo, já que se trata de um povo que merece ser dono do seu próprio destino, como os curdos hoje e os judeus até 1948.

Bom, concluída a fase da ocupação, o exército de Israel dedicou-se a fortificar pontos estratégicos nos territórios para se defender de possíveis ataques. Assim começou o que hoje se denomina com toda justiça como 'colonização ilegal' da margem ocidental do rio Jordão e da Faixa de Gaza.

Primeiro chegaram jovens de ambos os sexos e casais recém formados - a maioria deles membros do Mafdal de então, um partido religioso sionista nada fundamentalista e bastante constitucionalista.

Depois, com a chegada da direita ao poder em 1977, mudou completamente o perfil da ocupação civil e a sua explicação. O discurso deu um giro fatal em direção à extrema direita política e ao fundamentalismo religioso, deixando de lado os fundamentos de defesa até então usados (certamente bastante frágeis, porque guardavam no seu intestino o germe da anexação) e os substituindo por slogans nitidamente religiosos por um lado e pela visão messiânica dos seus profetas pelo outro. E assim foi que chegamos ao dia de hoje, quando parte considerável do povo do Estado de Israel - vítima do medo de morrer à toa por um lado, e pelo outro de uma manipulação informativa nada veraz e muito unilateral - contagiou-se dessa insensatez e intolerância que não aceita nada que não seja o tudo para nós e o nada para os outros.

Pouco a pouco, bala a bala, ação a reação, atentado suicida a assassinato seletivo e coletivo, os direitos e os deveres juridicamente definidos foram relegados a um segundo e terceiro plano, e apenas a mensagem religiosa e/ou cívico maximalista, tinha e tem força de lei para essa parte da sociedade que não reconhece o Estado de Israel como a máxima instância, considerando que tal instância está no além, e que apenas os seus rabinos são os fieis intérpretes da mesma. A terra ocupada provisoriamente passou então a ser a terra prometida que povoa a geografia do imaginário do povo judeu. E então começaram a morrer inocentes de um lado e do outro, em nome do deus da vingança de cada um dos lados.

A necessidade de Israel de proteger os civis que, a pedido dos sucessivos governos, mudaram-se para os territórios, fez que se decidisse militarizá-los, transformando-os sem que essa tivesse sido a intenção original, em objetivos de guerra, segundo a definição dos tratados e das convenções internacional que versam sobre a matéria.

Todas as casas dos colonos dispunham e dispõem de armas e munições que, ao longo dos anos, foram e ainda são utilizadas mais para o saque, a intimidação, a expulsão, do que para a defesa da família. E pouco a pouco ia reduzindo-se o direito de ir e vir da população local, impondo-se-lhe barreiras desumanas, controles absurdos, ou expulsando famílias inteiras das suas casas, e comunidades - au grand complet - dos seus povoados, e tudo isso feito em nome da segurança daqueles que ilegalmente ocupavam a terra alheia.

E assim transcorreram quase quatro décadas, com cada vez mais judeus mais e mais fanáticos, ocupando cada vez mais e mais terra alheia, e 'desligando' cada vez mais e mais populações palestinas, cada vez mais e mais humilhadas e radicalizadas. Não conheço melhor receita para que aconteça o que de fato tal situação provocou com o passar dos anos, do que esta.

A chegada de Sharon ao poder era, para todos os que o conheciam, um sinal de alarme. Fomos muitos os que advertimos e escrevemos o que acreditávamos fosse ocorrer, e basta apenas se ler o que foi publicado durante os últimos anos, para comprovar que não erramos muito. Na verdade, quase não erramos.

Repetir aqui opiniões sobre os governos de Sharon não cabe, já que seria incorrer em redundâncias que não se inserem no objetivo deste artigo.

A minha principal intenção é atribuir a responsabilidade a todos os governos israelenses que, ao longo de 38 anos, dedicaram-se a enganar centenas de milhares de cidadãos, oferecendo-lhes o paraíso de Hebrón a menos de uma hora de carro de Jerusalém, ou uma 'bíblica' (??) Gaza ou uma sacra Ramallah, quando todos esses governos sabiam, muito bem, que a ocupação dos territórios é um cheque sem fundos que pode demorar, mas finalmente será devolvido ao emissor, porque está sacado contra um banco celestial que primeiramente pediu concordata nos tempos da Inquisição, para falir definitivamente no Holocausto.

Por isso é que devemos entender a dor dessas pessoas que hoje têm que deixar as suas casas, já que muitos deles nasceram lá, e também os seus filhos e até os seus netos, e nos solidarizarmos com essa dor, que é real e profunda, e que não tem nada a ver com a dor dos que choram a retirada como se fosse uma traição ao deus dos judeus.

Ainda que para os muitos que pensam como eu, esses 'desligados' tenham usufruído ilegalmente algo que não lhes pertencia, não posso esquecer que lá chegaram pela mão de todos os governos israelenses, aos quais pouco importou o lado humano dessa ocupação sem fundo nem futuro. Pena que o desligamento de Iamit não serviu como exemplo do que viria depois.

Não é hora de culpar às pessoas por não querer abandonar as suas casas - ainda que tenham que fazê-lo por imperativo legal e democrático - porque, gostemos ou não, para muitos deles esse é o seu lar. Sua única casa. Seu único passado. Suas únicas lembranças, e ter que partir é sem dúvida doloroso até não poder mais.

Espero sinceramente que os colonos 'desligados' possam refazer as suas vidas dentro das fronteiras reconhecidas do Estado de Israel. Quem sabe, o 'mau pedaço' que estão atravessando os ajude a entender um pouco o que vai pela cabeça do povo palestino, que desde 1967 tem sido 'desligado' das suas casas sempre que o decidisse o exército de Israel, com povoados inteiros 'transferidos' a outras regiões por igual razão.

O mais importante deste primeiro passo é que seja realmente o primeiro passo, e não, como suponho seja o plano e o desejo de muitos - Sharon incluído - o último passo.

Provavelmente, uma parte do 'barulho' atual dos fundamentalistas tenha por objetivo transmitir a idéia de que, se para 'desligar' oito mil colonos quase se chegou a uma guerra civil, que nem se sonhe em 'desligar' quase trezentos mil colonos ilegais que moram na margem ocidental do Jordão.

Se assim for, a retirada de agora será uma enorme derrota e uma ameaça, porque o mundo, incluídos todos os judeus humanistas e progressistas e democratas e defensores de um Estado de Israel laico e livre, não se conformará em cair numa armadilha dessa natureza.

É hora de começar a fazer as malas. Quanto antes, melhor para o sionismo, para o Estado de Israel e para o povo judeu.



Nota do autor: Devido à natureza do tema, deixei de citar o papel dos palestinos em todo este processo. Vale lembrar, para não pecar por omissão, que os setores radicais, ou como se prefira chamá-los, os fundamentalistas islâmicos transformaram-se, ao longo dos últimos anos, nos grandes inimigos do povo e da causa palestina. Com amigos como eles, ninguém precisa de inimigos.




(27 de agosto/2005)
CooJornal no 439


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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