06/08/2005
Número - 436

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel


O GENERAL

O general estava exultante, pois acabara de deixar a esposa na rodoviária, bem embarcada no ônibus para o interior, carregando os filhos e a empregada a tiracolo.

Assim se fazia desde muitos anos atrás. Ela, a empregada e as crianças viajavam antes, aproveitando as férias desde o começo, usufruindo da casa de campo que tanto esforço lhe custara para convencer o marido que a comprasse.

Ele - devido às suas obrigações castrenses - somente se juntaria à família duas semanas depois, e coincidentemente era nisso que ambos pensavam - ela ao tempo em que o ônibus partia e ele enquanto o motorista do carro oficial iniciava o retorno ao lar.

Clarinha, esposa tradicional como as que não se fazem mais, lamentava as duas semanas que estaria longe dele.

Não tanto pelos dias, que entre uma novidade e outra correriam céleres, mas pelas noites, as quais se transformariam no motivo principal pelo qual ela mais lamentaria a separação. Essas noites em que ele, nu e de quepe, brandindo a espada, dá-lhe ordens peremptórias:

"Clarinha de costas! Clarinha mexe mais! Clarinha é uma ordem! Obedeça, mulher, que sou o teu marido! ".

E assim a subjugava enquanto ela tremia de medo e prazer, de culpa e excitação. Onze anos vivendo os dias para esperá-lo às noites. E agora, como todos os últimos janeiros, duas semanas de abstinência total.

Ele, general de quatro estrelas - um dos mais jovens - pensava, à medida que o carro se aproximava da sua residência oficial, em muitas coisas ao mesmo tempo.

Tratava de organizar o roteiro das duas semanas sem a Clarinha, pois não gostava de nada improvisado. Afinal não foi por obra do acaso que alcançara a quarta estrela enquanto quase todos os seus colegas de turma há muito tinham caído do cavalo, uns - aqueles com maior instinto de conservação - agarrando-se com unhas e dentes a alguma diretoria nas estatais; outros - os carreiristas - fazendo lobby para as grandes empreiteiras, mas todos eles - sem exceção - apenas coronéis. Só ele conseguira alcançar o generalato. E só ele sabia o quanto isso custara em mentiras, traições, promessas e empurrões.

Sim - pensou satisfeito, voltando ao presente - seria nas próximas duas semanas um general em completa disponibilidade, sem a Clarinha para lhe pedir o que ele não mais tinha vontade de lhe dar.

Cansara, e não porque tivesse deixado de gostar dela. Não, longe disso. A culpa de tudo devia ser atribuída ao peso do hábito, esse mesmíssimo hábito de que tanto gostava na vida militar, mas que tanto o incomodava nos seus jogos eróticos.

Bem que a Clarinha, coitada, se esforçava, aceitando sem um pio os caprichos dele. Tinha certeza que muitos homens gostariam de tê-la, e todos eles sairiam muito mais do que apenas satisfeitos - pensou o general enquanto descia do carro e entrava na sua residência.

Logo depois, enquanto abria e lia mecanicamente a correspondência que o esperava sobre a sua mesa de trabalho, tomou a decisão final sobre a estratégia que empregaria para usufruir as duas semanas que se iniciavam.

Sim, decidira-se. Faria o de sempre e como sempre. Sua orgia particular, usando a parceira habitual dos últimos anos. Duas semanas de completa e total libidinagem, como das vezes anteriores.

Deixando atrás a fase meramente fantasiosa e entrando de sola na etapa dos fatos concretos, chamou ao seu ajudante de ordens, o tenente Ari, e comunicou-lhe formalmente:

"Tenente, minha esposa e meus filhos já estão a caminho do sítio. Veja de providenciar o de todos os anos: quero que venha a puta gostosa do ano passado. O champanhe Cristal bem gelado. O caviar de Beluga. Os lençóis de cetim preto que lhe dei para guardar no ano passado.

Olha, deixo o assunto em suas mãos. Quero que tudo seja como da última vez, tintim por tintim. Ah! Claro!... Providencie velas vermelhas para os castiçais e por favor não esqueça nenhum detalhe. Veja que confio no senhor e dou por descontado o seu sigilo"

Pois é - matutou o general enquanto emitia de forma automática as ordens - o tenente Ari era uma verdadeira mão na roda. Fora dar na sua casa recomendado pelo Almirante Braguilhão. Antes estivera destinado no Departamento de Relações Públicas do Ministério, devido precisamente aos seus dotes de diplomata.

Com o correr dos anos o General confiou ao tenente seus mais íntimos segredos, fazendo dele – muito mais do que um simples ajudante de ordens - um aliado indispensável que lhe dava cobertura logística para as suas escapadas extraconjugais.

"Quero tudo preparado às 21 horas! Compreendido, tenente?..."
"Sim meu General! Às 21 horas estará tudo conforme aos seus desejos!"
"Muito bem, fique à vontade. Está dispensado".

E então o general, certo de que tudo estaria como ele havia decidido, deitou-se no sofá do seu escritório para tirar uma pestana, pois sabia muito bem sabido que tinha pela frente uma longa noite de prazer, a primeira de quatorze.

E assim foi. Depois de um par de horas de repouso acordou pontualmente às 19:30, tomou um banho na jaccuzzi, perfumou-se com as colônias compradas no Free Shop, vestiu uma calça sobre o corpo - pois não havia nada que o excitasse mais do que estar sem a roupa de baixo - e uma camisa fazendo jogo. Calçou um mocassim italiano sem meias, e olhando-se no espelho ficou satisfeito da imagem que este lhe devolvia, pois a vaidade era um dos seus mais prezados bens.

Vestira-se exatamente como das outras vezes, pois gostava de repetir a cerimônia nos seus mínimos detalhes.

Ficou caprichando no penteado, tentando domar alguns cabelos que teimavam em romper filas, até que faltando cinco minutos para a hora entrou no quarto preparado para a ocasião.

O primeiro que fez foi acariciar os lençóis de cetim num afago cheio de tesão. Depois, acendeu as velas dos castiçais e apagou as luzes do teto, sentou na cama tenso, expectante, rígido, repassando mentalmente o roteiro: "...primeiro chega o tenente com a bebida, a provo, ele sai, e depois ela chega e...."

O carrilhão do grande relógio da sala bateu 9 horas, interrompendo os pensamentos do general, e quando o eco da nona badalada abandonava o quarto, o tenente, fazendo gala de numa pontualidade britânica abriu a porta do aposento - como planejado - e entrou, vestindo seu uniforme de gala como o general o exigira, trazendo uma bandeja com champanhe e caviar.

Como um verdadeiro mestre de cerimônias abriu a garrafa, encheu a taça, colheu-a com a mão enluvada e entregou-a ao general para que este aprovasse a temperatura da bebida, como ensinam as regras de etiqueta.

Bebendo suave e impacientemente o general fez um leve gesto afirmativo balançando a cabeça, que era a senha combinada para o início da noite, e o tenente saiu, fechando a porta.

O general então se despiu rapidamente, e apoiando-se na espada aguardou expectante, tenso, ansioso, o início da cerimônia.

Após alguns segundos que lhe pareceram horas, a porta abriu-se, e Ivonette, numa entrada apoteótica, sem mais roupa sobre a pele do que um gracioso par de transparentes meias pretas que lhe cobriam as longas pernas, sustentadas por um não menos sensual par de ligas rendadas fazendo jogo, aproximou-se num andar rebolado e estudadamente sensual, quase animal, chegando até onde estava o general, que suava de impaciência e excitação.

Quando a aproximação da Ivonette chegou ao corpo-a-corpo, ao suor contra suor, à pele sobre pele, agarraram-se impetuosamente, beijaram-se desesperadamente, e amaram-se louca e insaciavelmente.

Durante duas semanas foram - como apenas acontece nos contos de fadas - felizes para sempre. Mas, como tudo que é bom duro pouco e termina, também os quatorze dias de liberdade do general não foram uma exceção a essa regra.

Quando finalmente chegou a hora da despedida, o general, já vestindo o seu uniforme, e num gesto eloqüente que bem demonstrava o quanto tinha ficado satisfeito, presenteou a Ivonette com um belo e caríssimo relógio Rolex de ouro que comprara na Suíça quando lá estivera verificando o estado da conta secreta na qual depositava as comissões das operações de compra de armas no exterior.

Ivonette em contrapartida, e num gesto que também pretendia demonstrar a sua satisfação e agradecimento, ofereceu-lhe as ligas e as meias que usara nesses dias e que ele tanto gostara.

E fim de festa. O general em disponibilidade voltou a ser o militar em atividade, vestindo a carranca apropriada ao seu grau e retornando à rotina de dar ordens peremptórias aos subordinados, como convém a todo general que se preze.

A Ivonette, entretanto, já despida do olhar de lascívia e da sensualidade natural que emanava do suave bamboleio de seus quadris, e com um relógio Rolex de ouro no pulso, voltou à rotina quotidiana de ser o tenente Ari, encarregado de transformar em realidade os desejos e as ordens do seu general de quatro estrelas.


(06 de agosto/2005)
CooJornal no 436


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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