Aproveitei a manhã órfã de projetos e árida de obrigações a cumprir, e
vencendo a todos os meus medos e fantasmas, finalmente dei o passo tantas
vezes adiado e fui passear pela Avenida Atlântica, onde o sol deu-me as
boas-vindas com um afago morno e doce que fazia muito tempo não sentia sobre a
minha pele já acostumada ao nublado céu escandinavo.
A viagem foi bem curtinha. Na verdade, bastou um fechar de olhos e ali estava
eu, outra vez “galopando” o calçadão a caminho do Leme, e à medida que
avançava ia desintoxicando-me da angústia existencial que sem direitos
adquiridos nem licença de funcionamento insistia em abrir as suas portas nessa
manhã feita para não pensar em nada mais que não fosse não pensar em nada
mais.
Creio que foi quando chegava à esquina da Princesa Isabel pisando com cuidado
para não machucar a sombra de mim mesmo que me olhava tristonha desde as
pedras portuguesas dessa rua que já fora tão minha, que finalmente consegui
desembaraçar-me desse mal-estar vitalício que há séculos insiste em ocupar
militarmente os meus dias e as minhas noites. Desse ponto em diante a
caminhada foi agradável e descontraída, enchendo os meus pulmões de rosados sonhos-de-valsa e picolés de chocolate a cada passo que dava, fazendo-me
esquecer os motivos que geraram e gestaram essa angústia mal parida.
Desacostumado, e por isso enjoado de tanto sol, nem bem cheguei ao fim do Leme
decidi que já era tempo de voltar, e foi o que fiz sem pensar duas vezes.
Fechei com sete chaves os portões da fantasia, e abrindo os olhos retornei ao
inverno sueco do qual sou inquilino honoris causa, e sem perda de tempo
sentei frente ao computador para registrar na minha memória eletrônica o fato
de que finalmente cheguei à triste conclusão de que a lição tantas vezes
aprendida não oferece nenhuma garantia, pois mesmo que conheçamos as atitudes
e os argumentos que devemos esgrimir para proteger-nos das adversidades, não
sempre os empregaremos quando sejam necessários, já que a nossa malsã
necessidade de sofrer iguala em fundamento e urgência o nosso imperativo
desejo de derrotar a esse mesmo sofrimento.
Satisfeito com o bronzeado que a minha aventura metafísica imprimira na
epiderme das minhas lembranças, desliguei o aparelho cibernético com uma
sensação de déjà vu e ao mesmo tempo de dever cumprido, e fui visitar o
jardim da minha casa, onde a neve fazia muitas horas que me esperava sentada
sobre a grama congelada e destingida que – por baixo do manto branco que a
cobria - pacientemente contava os dias que faltavam para a chegada do tão
esperado degelo primaveral.
Comecei a assoviar o samba preferido da neve, e esta, com um olhar entre
insinuante e pidão, convidou-me a dançar ao ritmo de um par de lágrimas
virtuais, e eu, herdeiro universal do meu passado, aceitei o convite, e
enlaçando pela cintura ao desconsolo, e apoiando a minha face nos mil rostos
de outros tempos, dancei uma solidão interminável.
*** Quando cremos que temos todas as respostas,
vem a Vida e muda todas as perguntas. ***
(30 de julho/2005)
CooJornal
no 435