16/07/2005
Número - 429

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel


IRONIAS DA VIDA
(O começo do longo exílio)
 

 

Bati a porta, fechei as três chaves, peguei o elevador e saí para a manhã cheia de sol com que o Rio geralmente nos acorda.

Uma vez na rua, apressei o passo, como já querendo chegar ao destino. Caminhando num só fôlego devorei os quarteirões que me separavam de.... mmm... de... da... do... ué, onde mesmo estava indo?... Parei e gelei. Bati com a mão na testa, num gesto de assombro enquanto um suor frio mostrava suas mãos acariciando-me o rosto.

Não entendia, pois tinha certeza de tê-lo trazido comigo. E a certeza era tanta que mesmo no meio da rua comecei a procurar. Primeiro na consciência. Depois, ante o infrutífero resultado, comecei a revirar as gavetas da memória, mas, creia-se ou não, foi-me impossível achá-lo. Sim, difícil de acreditar, mas pela primeira vez na vida tinha perdido o meu Rumo.

Sem saber ao certo se voltar ou seguir, apostei na aventura. Aluguei um camelo na esquina da Garcia D'Avila e parti sem rumo nem bússola, apenas seguindo a lembrança dos trilhos que uma vez levaram bondes no seu lombo, e descendo a Visconde de Pirajá cheguei no deserto de Copacabana.

Ao contemplar a aridez da paisagem humana pensei em desistir, mas ao ver como a Sociedade - que placidamente descansava à beira de um oásis - assaltava com premeditação e aleivosia a uns pivetes que por ali passavam, fiquei contemplando a técnica perfeita com que despojavam os garotos da dignidade humana; como lhes extirpavam - sem anestesia - as esperanças de um futuro melhor.

Sim, ante tal cena decidi continuar, não sem antes aplaudir o espetáculo que presenciava, ainda que uma das partes não pudesse e a outra não quisesse entender a razão da minha manifestação alegórica.

Segui o caminho que o camelo escolheu, e após uns minutos o dito cujo estacionou na porta da igreja na Barão de Ipanema, e como a ocasião faz o ladrão - entrei no templo sagrado sem duvidar um instante.

Mesmo cedo como era não estava vazia, mas muito pelo contrário, pairava no ambiente um ar de hipocrisia, adequado a todos os templos de todos os credos, e não por culpa dos crentes, mas de quem administra os negócios divinos.

Iniciei a exploração do terreno abrindo portas e mais portas até chegar ao confessionário, o mini-paraíso desde o qual se recebe sempre - não importa qual seja a crueldade do pecado cometido - a absolvição, pois ninguém é de ferro; e se os pecadores não forem perdoados, a freguesia não volta...

Curiosidade saciada, saí - mais impuro do que entrei - e lá fui em busca do camelo que, tão previsível como o límpido céu dessa bela manhã carioca, havia sido devidamente confiscado pelo DETRAN sob a alegação de estacionamento em local proibido, com o agravante de que o dono não se encontrava presente para efetuar o pagamento do suborno estabelecido na Lei da Selva.

O acaso solucionou o problema da minha falta de condução. Sem pensar duas vezes montei num deputado estadual que por ali passava e, ainda que ante a comparação sentisse saudade da inteligência e cultura do camelo, não tive alternativa senão galopar esse bípede quadrúpede. Isso sim, parei na primeira estrebaria e comprei um fecha-o-bico, que só me faltava que o deputado quisesse abrir a boca!

Foi a pior parte da viagem, pois eu desejava transitar pelas avenidas da outrora Princesinha do Mar, buscando os resquícios da antiga civilização ali imperante, enquanto que o referido mamífero, talvez por vício profissional, buscava os atalhos perigosos que sempre conduziam aos becos sem saída.

Tanto fez, tantas vezes entrou na contramão, que cansei. Bastou apenas um telefonema ao canalha de turno para que o assunto fosse resolvido: o deputado foi nomeado Ministro do Tribunal de Contas e imediatamente aposentado com todas as regalias, e assim livrei-me dele.

Se alguém pensa que fiquei muito tempo a pé, erra. Uma enorme carreta aproximava-se velozmente, o que me obrigou a arriscar o pulo para abordá-la - o que consegui na primeira tentativa.

A carroça, que era enorme - muito maior que a decência e a honestidade juntas - tinha nome e sobrenome. Chamava-se Falta de Vergonha, e confessou-me ser filha legítima do sistema imperante e da herança política.

E lá fui eu, deitado nos braços da semvergonhada semvergonhice, a caminho - disse-me ela - da sua residência oficial.

Pois bem, cruzamos Minas Gerais, e logo que chegamos aos limites com Brasília trocou para a bandeira dois, pois contou-me que ali o suborno é 20% mais caro.

Apeei-me às portas do Congresso, onde - veja-se as voltas que a vida dá - estava o Camelo. Tive a certeza de que era o mesmíssimo, pois reconheci-lhe o perfil de estadista. Mas o muito safado esnobou-me, e logo entendi o por quê: havia sido nomeado Ministro da Ciência e da Tecnologia.

Decidi então caminhar ao léu, e fui, de Esplanada em Esplanada, vendo figuras ilustres velejando nesse mar de lama. Aqui a Dona Bandalha sem Limites; acolá o tão conhecido e popular Assalto aos Cofres Públicos; só virar o rosto e dar de cara com a fraude eleitoral, togada e cada vez mais gorda; e um exército de empreiteiros carregando o baú da felicidade, cheio de cheques e propostas indecentes.

Vi também um batalhão de pequenas formigas, umas chefiando as compras nos hospitais; outras encarregadas das ajudas aos flagelados; algumas administrando a assistência aos pobres.

Sim, ao vê-las não pude deixar de pensar: eis aqui os futuros proprietários das coberturas da Vieira Souto, das Mansões do Lago, e dos palacetes dos Jardins. Êta povo trabalhador!!...

Com dor nas pernas da minha alma, olhei o meu relógio e constatei que pelo menos para mim já era tarde demais, e vendo como anoitecia sobre todos nós - ladrões e roubados, culpados e vítimas- tomei a decisão de voltar. Se o tempo que vivemos é irreversível - pensei enquanto o meu patriotismo chorava por todos os seus poros - não assim o é a minha presença.

Dito e feito. Ao ver passar uma Grande Mentira construída especialmente para uso presidencial, pedi-lhe que abrisse as asas e me devolvesse ao ponto de partida, e ela, que tinha o apelido carinhoso de Educação e Saúde para Todos, vendo que não havia ninguém por perto montou-me nas suas costas e num abrir e fechar de olhos depositou-me na porta da minha casa, no início da manhã, quando quase fechando as chaves finalmente lembrei-me de ter esquecido o meu Rumo no armário das boas intenções.

Dominado por um desânimo insuportável decidi-me quase sem pensar. Bati a porta, passei as chaves, peguei o elevador e saí para a manhã cheia de sol com que o Rio geralmente nos acorda, e a galope de mim mesmo cavalguei até uma agência de viagens onde comprei a passagem que me trouxe até o lugar onde durante os últimos anos - tenho chorado e penado de saudades do Brasil.

[Nota: Depois reler o escrito, reparei que devo três explicações:
1.- A burrice do deputado é a regra e não a exceção que a confirma.
2.- A sabedoria do camelo é a exceção que a confirma, e não a regra.
3.- Todo este texto não passa de simples realidade, e qualquer tentativa de transformá-lo em ficção deverá ser entendida como uma vontade de jogar o velho jogo do avestruz, enterrando a cabeça num buraco para não ver a realidade]



(16 de julho/2005)
CooJornal no 429


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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