Bati a porta, fechei as três
chaves, peguei o elevador e saí para a manhã cheia de sol com que o Rio
geralmente nos acorda.
Uma vez na rua, apressei o passo, como já querendo chegar ao destino.
Caminhando num só fôlego devorei os quarteirões que me separavam de.... mmm...
de... da... do... ué, onde mesmo estava indo?... Parei e gelei. Bati com a mão
na testa, num gesto de assombro enquanto um suor frio mostrava suas mãos
acariciando-me o rosto.
Não entendia, pois tinha certeza de tê-lo trazido comigo. E a certeza era
tanta que mesmo no meio da rua comecei a procurar. Primeiro na consciência.
Depois, ante o infrutífero resultado, comecei a revirar as gavetas da memória,
mas, creia-se ou não, foi-me impossível achá-lo. Sim, difícil de acreditar,
mas pela primeira vez na vida tinha perdido o meu Rumo.
Sem saber ao certo se voltar ou seguir, apostei na aventura. Aluguei um camelo
na esquina da Garcia D'Avila e parti sem rumo nem bússola, apenas seguindo a
lembrança dos trilhos que uma vez levaram bondes no seu lombo, e descendo a
Visconde de Pirajá cheguei no deserto de Copacabana.
Ao contemplar a aridez da paisagem humana pensei em desistir, mas ao ver como
a Sociedade - que placidamente descansava à beira de um oásis - assaltava com
premeditação e aleivosia a uns pivetes que por ali passavam, fiquei
contemplando a técnica perfeita com que despojavam os garotos da dignidade
humana; como lhes extirpavam - sem anestesia - as esperanças de um futuro
melhor.
Sim, ante tal cena decidi continuar, não sem antes aplaudir o espetáculo que
presenciava, ainda que uma das partes não pudesse e a outra não quisesse
entender a razão da minha manifestação alegórica.
Segui o caminho que o camelo escolheu, e após uns minutos o dito cujo
estacionou na porta da igreja na Barão de Ipanema, e como a ocasião faz o
ladrão - entrei no templo sagrado sem duvidar um instante.
Mesmo cedo como era não estava vazia, mas muito pelo contrário, pairava no
ambiente um ar de hipocrisia, adequado a todos os templos de todos os credos,
e não por culpa dos crentes, mas de quem administra os negócios divinos.
Iniciei a exploração do terreno abrindo portas e mais portas até chegar ao
confessionário, o mini-paraíso desde o qual se recebe sempre - não importa
qual seja a crueldade do pecado cometido - a absolvição, pois ninguém é de
ferro; e se os pecadores não forem perdoados, a freguesia não volta...
Curiosidade saciada, saí - mais impuro do que entrei - e lá fui em busca do
camelo que, tão previsível como o límpido céu dessa bela manhã carioca, havia
sido devidamente confiscado pelo DETRAN sob a alegação de estacionamento em
local proibido, com o agravante de que o dono não se encontrava presente para
efetuar o pagamento do suborno estabelecido na Lei da Selva.
O acaso solucionou o problema da minha falta de condução. Sem pensar duas
vezes montei num deputado estadual que por ali passava e, ainda que ante a
comparação sentisse saudade da inteligência e cultura do camelo, não tive
alternativa senão galopar esse bípede quadrúpede. Isso sim, parei na primeira
estrebaria e comprei um fecha-o-bico, que só me faltava que o deputado
quisesse abrir a boca!
Foi a pior parte da viagem, pois eu desejava transitar pelas avenidas da
outrora Princesinha do Mar, buscando os resquícios da antiga civilização ali
imperante, enquanto que o referido mamífero, talvez por vício profissional,
buscava os atalhos perigosos que sempre conduziam aos becos sem saída.
Tanto fez, tantas vezes entrou na contramão, que cansei. Bastou apenas um
telefonema ao canalha de turno para que o assunto fosse resolvido: o deputado
foi nomeado Ministro do Tribunal de Contas e imediatamente aposentado com
todas as regalias, e assim livrei-me dele.
Se alguém pensa que fiquei muito tempo a pé, erra. Uma enorme carreta
aproximava-se velozmente, o que me obrigou a arriscar o pulo para abordá-la -
o que consegui na primeira tentativa.
A carroça, que era enorme - muito maior que a decência e a honestidade juntas
- tinha nome e sobrenome. Chamava-se Falta de Vergonha, e confessou-me ser
filha legítima do sistema imperante e da herança política.
E lá fui eu, deitado nos braços da semvergonhada semvergonhice, a caminho -
disse-me ela - da sua residência oficial.
Pois bem, cruzamos Minas Gerais, e logo que chegamos aos limites com Brasília
trocou para a bandeira dois, pois contou-me que ali o suborno é 20% mais caro.
Apeei-me às portas do Congresso, onde - veja-se as voltas que a vida dá -
estava o Camelo. Tive a certeza de que era o mesmíssimo, pois reconheci-lhe o
perfil de estadista. Mas o muito safado esnobou-me, e logo entendi o por quê:
havia sido nomeado Ministro da Ciência e da Tecnologia.
Decidi então caminhar ao léu, e fui, de Esplanada em Esplanada, vendo figuras
ilustres velejando nesse mar de lama. Aqui a Dona Bandalha sem Limites; acolá
o tão conhecido e popular Assalto aos Cofres Públicos; só virar o rosto e dar
de cara com a fraude eleitoral, togada e cada vez mais gorda; e um exército de
empreiteiros carregando o baú da felicidade, cheio de cheques e propostas
indecentes.
Vi também um batalhão de pequenas formigas, umas chefiando as compras nos
hospitais; outras encarregadas das ajudas aos flagelados; algumas
administrando a assistência aos pobres.
Sim, ao vê-las não pude deixar de pensar: eis aqui os futuros proprietários
das coberturas da Vieira Souto, das Mansões do Lago, e dos palacetes dos
Jardins. Êta povo trabalhador!!...
Com dor nas pernas da minha alma, olhei o meu relógio e constatei que pelo
menos para mim já era tarde demais, e vendo como anoitecia sobre todos nós -
ladrões e roubados, culpados e vítimas- tomei a decisão de voltar. Se o tempo
que vivemos é irreversível - pensei enquanto o meu patriotismo chorava por
todos os seus poros - não assim o é a minha presença.
Dito e feito. Ao ver passar uma Grande Mentira construída especialmente para
uso presidencial, pedi-lhe que abrisse as asas e me devolvesse ao ponto de
partida, e ela, que tinha o apelido carinhoso de Educação e Saúde para Todos,
vendo que não havia ninguém por perto montou-me nas suas costas e num abrir e
fechar de olhos depositou-me na porta da minha casa, no início da manhã,
quando quase fechando as chaves finalmente lembrei-me de ter esquecido o meu
Rumo no armário das boas intenções.
Dominado por um desânimo insuportável decidi-me quase sem pensar. Bati a
porta, passei as chaves, peguei o elevador e saí para a manhã cheia de sol com
que o Rio geralmente nos acorda, e a galope de mim mesmo cavalguei até uma
agência de viagens onde comprei a passagem que me trouxe até o lugar onde
durante os últimos anos - tenho chorado e penado de saudades do Brasil.
[Nota: Depois reler o escrito, reparei que devo três explicações:
1.- A burrice do deputado é a regra e não a exceção que a confirma.
2.- A sabedoria do camelo é a exceção que a confirma, e não a regra.
3.- Todo este texto não passa de simples realidade, e qualquer tentativa de
transformá-lo em ficção deverá ser entendida como uma vontade de jogar o velho
jogo do avestruz, enterrando a cabeça num buraco para não ver a realidade]
(16 de julho/2005)
CooJornal
no 429