(Esboço de uma
lágrima verbal, nada virtual. Um só parágrafo do longo discurso da realidade)
Quando chegue o dia da mãe ...
...como sempre ocorre, cada um dos
cada vez mais incontáveis meninos de rua abraçar-se-á ao sinal luminoso de uma
das muitas esquinas de sua mãe adotiva, e festejará a magna data partilhando com
os seus irmãos de desventura alguns talharins confiscados do fundo da lixeira
onde a fartura despeja as sobras orgânicas do seu egoísmo, brindando com água
poluída pela felicidade de todas as ruas, de todos os becos, de todas as
ladeiras, de todas as estradas e avenidas, até que finalmente o sono chegue e a
velha criança, num passe de mágica digno do melhor dos ilusionistas, transforme
um par de folhas amarrotadas do caderno de economia em lençol e cobertor, e sem
o afago materno ou o copo de leite ou o beijo na testa como fecho de ouro desse
dia, e sem nem sequer poder apagar a luz do farol e o reflexo da lua e das
estrelas que insistem em iluminar a sua dilacerante solidão, ou abafar o rangido
dos pneus e os gritos de alegria que saem das janelas circundantes invadindo os
seus ouvidos órfãos de palavras meigas, deitar-se-á sobre os restos mortais de
todos os seus sonhos, e abraçando-se à sua desilusão hereditária aceitará o
convite do cansaço vitalício que o prostra e da desnutrição milenar que lhe
fecha os olhos, para transformar-se no ator principal dos seus pesadelos
infantis, tendo como público atento e faminto a um multitudinário batalhão de
ratos e vira-latas e piolhos, e como cenário a fria, asfaltada e poluída saia da
mãe-rua, ama-seca honoris causa de todas as crianças expulsas do paraíso pela
injustiça social que dita as regras do jogo inventado por aqueles que tudo podem
e tudo querem e com tudo ficam.
Boi... boi... boi... boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de
careta...
(05 de março/2005)
CooJornal
no 410