19/02/2005
Número - 408

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel



A ARTE DE PLAGIAR


 

 Não sei se foi a falta de inspiração ou a ausência de talento ou a carência de princípios ou tudo junto ou outra coisa o que me induziu há muitíssimos anos a iniciar-me na arte de plagiar.

Provavelmente o fato de gostar de escrever seja o culpado pela prática reiterada do que alguns definem sem qualquer rigor científico como plágio literário.

Confesso que em quase tudo que escrevi – desde os alvores da minha juventude e até a presente data – incluí idéias alheias com maior ou menor grau de fidelidade à versão original das mesmas.

Hoje entretanto, com o desejo de protagonismo bastante amortecido pelo peso dos anos, creio que devo a muitos um sincero mea culpa para que saibam – ainda que com atraso – que não fui eu o único autor de quase tudo que assinei.

Dessa longa lista de transgressões literárias escolho para mencionar – sem obedecer a qualquer ordem cronológica – algumas das muitas que a minha memória mantém prisioneiras.

Conto-lhes então que não foram poucas as vezes em que plagiei o desapiedado silêncio da solitude, e para camuflar o meu delito vesti-o com palavras que o mostrassem como se do filho predileto da minha verve criativa se tratasse.

Em não menos ocasiões plagiei dois olhares que se encontram e um par de bocas que se tocam e dois corpos que se somam, e para enganar o leitor incrustei esses olhares nas meninas dos meus olhos, e os meus lábios visitaram outras bocas, e o meu corpo desmaiou entre as pernas da amante real ou imaginada.

O trinar dos pássaros e o reflexo da lua na janela também foram vítimas de similar atropelo, pois muitas vezes nas frases que escrevi o gorjeio do canário brincava de esconde-esconde entre as letras, e a lua amiúde iluminava a inspiração no horizonte das estrofes.

Plagiei a melancolia de uma folha despedindo-se da árvore no outono, transformando tal evento num adeus em prosa e verso, e da placidez do rio apossei-me num poema que enchi de peixes transitivos e tartarugas substantivas.

Tenho plagiado sem remordimentos a angústia de esperar em vão e o desespero de perder sem ter lutado, e à esperança transformei-a em leitmotiv de minhas prosas e meus versos.

Como se tudo isso ainda fosse pouco, cheguei ao cúmulo de plagiar-me, tentando com risos de outrora anestesiar penas de agora, ou escrevendo e reescrevendo o já dito e repetido tantas vezes, trocando apenas as palavras e mantendo intato o conteúdo.

O que dizer então das vezes que reciclei angústias pretéritas, amores falidos, sonhos alheios, e imitando a um cardeal no seu ofício batizei-os com meu nome e sobrenome, e os senti tão meus que até cheguei a pensar que sim o eram, pagando as minhas contas à vida com histórias e poemas fabricados na penumbra da ponta de um lápis ou sob a sombra protetora de um teclado.

Tive a ousadia de plagiar nem mais nem menos que ao Senhor de todos os Senhores, transformando folhas em branco em planetas coloridos, e sem descansar no sétimo dia continuei criando mares e céus, idéias e conceitos, amores e fracassos, verdades e mentiras. Deus único do meu mundo, concedi vida às palavras e essência às pessoas.

Sim. Pequei e o confesso. Plagiei a vida e seus atores; seus valores e temores; seus tremores e clamores; seu amores e também as suas dores. Com maior ou menor arte usei o pouco que sei para falar de cátedra sobre o muito que ignoro.

O meu único consolo é saber que não estou só, porque quem escreve sabe muito bem que não estou só; porque quem olha pela janela onde não há janelas ou fecha os olhos para olhar o mundo, sabe que não estou só, e quem decifra sonhos próprios e alheios ou vê além das palavras, sabe também que não estou só.

O que sim sei com certeza é que a circunstância de não ser o único plagiador não me concede o benefício da dúvida, porque atrever-se a usar a vida como a tenho usado para atrever-se a contar a vida como a tenho contado não é coisa que nos tempos que vivemos se perdoe facilmente, já que neste mundo virtual que nos digitaliza e neutraliza, que nos padroniza e etiqueta, ou nos desumanizamos ou desaparecemos.

No meu caso – fiel a mim mesmo – escolho continuar plagiando. Quem possa queira e se atreva, que atire a primeira pedra.


(19 de fevereiro/2005)
CooJornal no 408


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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