Bruno Kampel
A ARTE DE PLAGIAR
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Não sei se foi a falta de inspiração ou a ausência de talento ou a carência de
princípios ou tudo junto ou outra coisa o que me induziu há muitíssimos anos a
iniciar-me na arte de plagiar.
Provavelmente o fato de gostar de escrever seja o culpado pela prática reiterada
do que alguns definem sem qualquer rigor científico como plágio literário.
Confesso que em quase tudo que escrevi – desde os alvores da minha juventude e
até a presente data – incluí idéias alheias com maior ou menor grau de
fidelidade à versão original das mesmas.
Hoje entretanto, com o desejo de protagonismo bastante amortecido pelo peso dos
anos, creio que devo a muitos um sincero mea culpa para que saibam –
ainda que com atraso – que não fui eu o único autor de quase tudo que assinei.
Dessa longa lista de transgressões literárias escolho para mencionar – sem
obedecer a qualquer ordem cronológica – algumas das muitas que a minha memória
mantém prisioneiras.
Conto-lhes então que não foram poucas as vezes em que plagiei o desapiedado
silêncio da solitude, e para camuflar o meu delito vesti-o com palavras que o
mostrassem como se do filho predileto da minha verve criativa se tratasse.
Em não menos ocasiões plagiei dois olhares que se encontram e um par de bocas
que se tocam e dois corpos que se somam, e para enganar o leitor incrustei esses
olhares nas meninas dos meus olhos, e os meus lábios visitaram outras bocas, e o
meu corpo desmaiou entre as pernas da amante real ou imaginada.
O trinar dos pássaros e o reflexo da lua na janela também foram vítimas de
similar atropelo, pois muitas vezes nas frases que escrevi o gorjeio do canário
brincava de esconde-esconde entre as letras, e a lua amiúde iluminava a
inspiração no horizonte das estrofes.
Plagiei a melancolia de uma folha despedindo-se da árvore no outono,
transformando tal evento num adeus em prosa e verso, e da placidez do rio
apossei-me num poema que enchi de peixes transitivos e tartarugas substantivas.
Tenho plagiado sem remordimentos a angústia de esperar em vão e o desespero de
perder sem ter lutado, e à esperança transformei-a em leitmotiv de minhas prosas
e meus versos.
Como se tudo isso ainda fosse pouco, cheguei ao cúmulo de plagiar-me, tentando
com risos de outrora anestesiar penas de agora, ou escrevendo e reescrevendo o
já dito e repetido tantas vezes, trocando apenas as palavras e mantendo intato o
conteúdo.
O que dizer então das vezes que reciclei angústias pretéritas, amores falidos,
sonhos alheios, e imitando a um cardeal no seu ofício batizei-os com meu nome e
sobrenome, e os senti tão meus que até cheguei a pensar que sim o eram, pagando
as minhas contas à vida com histórias e poemas fabricados na penumbra da ponta
de um lápis ou sob a sombra protetora de um teclado.
Tive a ousadia de plagiar nem mais nem menos que ao Senhor de todos os Senhores,
transformando folhas em branco em planetas coloridos, e sem descansar no sétimo
dia continuei criando mares e céus, idéias e conceitos, amores e fracassos,
verdades e mentiras. Deus único do meu mundo, concedi vida às palavras e
essência às pessoas.
Sim. Pequei e o confesso. Plagiei a vida e seus atores; seus valores e temores;
seus tremores e clamores; seu amores e também as suas dores. Com maior ou menor
arte usei o pouco que sei para falar de cátedra sobre o muito que ignoro.
O meu único consolo é saber que não estou só, porque quem escreve sabe muito bem
que não estou só; porque quem olha pela janela onde não há janelas ou fecha os
olhos para olhar o mundo, sabe que não estou só, e quem decifra sonhos próprios
e alheios ou vê além das palavras, sabe também que não estou só.
O que sim sei com certeza é que a circunstância de não ser o único plagiador não
me concede o benefício da dúvida, porque atrever-se a usar a vida como a tenho
usado para atrever-se a contar a vida como a tenho contado não é coisa que nos
tempos que vivemos se perdoe facilmente, já que neste mundo virtual que nos
digitaliza e neutraliza, que nos padroniza e etiqueta, ou nos desumanizamos ou
desaparecemos.
No meu caso – fiel a mim mesmo – escolho continuar plagiando. Quem possa queira
e se atreva, que atire a primeira pedra.
(19 de fevereiro/2005)
CooJornal
no 408
Bruno Kampel é analista político, poeta e
escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se
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