13/11/2004
Número - 394

ARQUIVO
BRUNO KAMPEL

 
Bruno Kampel



REI MORTO, REI POSTO

 

Há muitos exemplos de países criados artificialmente por força das vitórias militares que anexam e ocupam territórios, que juntam grupos sociais e etnias diferenciadas, onde "convivem" idiomas diversos e religiões antagônicas.

Com o passar do tempo muitos desses países produziram um sistema único e antidemocrático de poder sob o qual o território se mantém indivisível e o povo ferrenhamente controlado. Essa ditadura feroz do início é paulatinamente assimilada e aceita pela população, que no fim não sabe viver sem o "pai" que a "protege”.

A antiga Iugoslávia e o Iraque são dois exemplos claros disso. Tito e Saddam mantiveram a coesão territorial e o equilíbrio religioso e étnico graças ao terrorismo de estado que utilizaram primeiro, e a um paternalismo militarizado depois. E há muitos exemplos mais. Basta abrir um livro de História ou ler o mapa do mundo.

Com a morte de um (Tito) e a derrocada do outro (Saddam), esses dois países virtuais deixaram de sê-lo, transformando-se em tantos países quantos sejam os povos que o habitam, cada um com característica religiosa específica; com líderes particulares; com objetivos geralmente antagônicos. No caso iugoslavo surgiram novos países. No caso do Iraque, só saberemos quando finde a guerra.

No caso palestino, a OLP por um lado e a ANP pelo outro não diferem desses dois países, a não ser pelas razões que levaram a que vários grupos inimigos, liderados por chefes que se odiavam e odeiam uns aos outros, se unissem, pois neste caso o catalisador principal foi o desprezo ao "invasor judeu", somado ao estabelecimento oficial do Estado de Israel na "terra de Alá", e acrescido pela injusta e sangrenta ocupação dos territórios em 1967 e vigente até os dias de hoje.

Essa união dos opostos só foi possível pela existência de um líder de facto e de iure, cujo poder emanava do sangue judeu derramado nos atentados e nos seqüestros e nas explosões de aviões, e se consolidava com o assassinato dos atletas em Munich/72 e com o controle absoluto dos dinheiros bem e mal havidos pela resistência palestina.

O processo de paz iniciado em Madri e culminado em Oslo foi, junto com o anti-clímax de Camp David, o início do enfraquecimento de Arafat como líder, porque parte importante do seu povo estava insatisfeita com a pobreza crescente por um lado e pelo crescimento sistemático dos assentamentos pelo outro, e as lideranças religiosas fundamentalistas souberam aproveitar a ocasião e começaram a vender o seu discurso repleto de objetivos maximalistas, radicalizando assim uma parte importante do tecido social palestino.

Grosso modo, a progressiva perda de poder de Arafat - promovida em grande parte pela atuação do governo Sharon - interessado em fechar todas as portas possíveis para um acordo de paz, já que ele e o seu partido não pretendem (como nunca pretenderam) devolver a maioria dos territórios ocupados na margem ocidental do rio Jordão) - agindo no sentido de desmantelar os instrumentos de poder da Autoridade Nacional Palestina, como sejam a Polícia, a arrecadação de impostos, o registro civil, a infra-estrutura rodoviária, fazendo com isso que as mesquitas controladas pelos grupos religiosos mais radicais - até então marginalizados do poder - assumissem um papel preponderante na "catequização" e controle da população, dando início a uma guerra santa que fugiu ao controle da OLP e da ANP, entidades laicas e majoritariamente anticlericais.

Ao contrário do desejado pelo governo atual de Israel - e a despeito do tratamento dado a Arafat pelo governo israelense (mantendo-o "prisioneiro" durante quase 3 anos na Mokata), o confinamento serviu para manter e aumentar o simbolismo da sua figura, que agora, morto definitivamente o corpo, se transformará num símbolo mítico e invencível, porque não há bombardeio seletivo ou coletivo que o possa destruir ou eliminar do registro da História e do imaginário coletivo do povo palestino e de muitos milhões no mundo que o usarão como bandeira contra o governo de Israel, e, principalmente, contra o povo judeu. E Ariel Sharon é um dos responsáveis por isso.

Hoje, sem Arafat nem líder que possa substituí-lo, dependerá única e exclusivamente do pragmatismo que puder explicitar e fazer gala o governo Sharon, que a morte de Arafat seja o fim de uma era manchada de sangue ou a continuação incrementada da violência atual.

Tempos difíceis nos esperam, porque sem Arafat que segure pelo menos uma das rédeas, o cavalo do terrorismo islâmico e do contraterrorismo de estado pode desbocar-se e atropelar os últimos restos de esperança que ainda respiram nesse cantinho do mundo.

Sou pessimista, porque troikas ou quartetos nunca serviram para bons propósitos, mas muito pelo contrário, ajudaram a agudizar diferenças e promover lutas intestinas que institucionalizaram o beco sem saída como programa de governo e a desesperança como bandeira.



(13 de novembro/2004)
CooJornal no 394


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
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