Bruno Kampel
REI MORTO, REI POSTO
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Há muitos exemplos de países
criados artificialmente por força das vitórias militares que anexam e ocupam
territórios, que juntam grupos sociais e etnias diferenciadas, onde "convivem"
idiomas diversos e religiões antagônicas.
Com o passar do tempo muitos desses países produziram um sistema único e
antidemocrático de poder sob o qual o território se mantém indivisível e o povo
ferrenhamente controlado. Essa ditadura feroz do início é paulatinamente
assimilada e aceita pela população, que no fim não sabe viver sem o "pai" que a
"protege”.
A antiga Iugoslávia e o Iraque são dois exemplos claros disso. Tito e Saddam
mantiveram a coesão territorial e o equilíbrio religioso e étnico graças ao
terrorismo de estado que utilizaram primeiro, e a um paternalismo militarizado
depois. E há muitos exemplos mais. Basta abrir um livro de História ou ler o
mapa do mundo.
Com a morte de um (Tito) e a derrocada do outro (Saddam), esses dois países
virtuais deixaram de sê-lo, transformando-se em tantos países quantos sejam os
povos que o habitam, cada um com característica religiosa específica; com
líderes particulares; com objetivos geralmente antagônicos. No caso iugoslavo
surgiram novos países. No caso do Iraque, só saberemos quando finde a guerra.
No caso palestino, a OLP por um lado e a ANP pelo outro não diferem desses dois
países, a não ser pelas razões que levaram a que vários grupos inimigos,
liderados por chefes que se odiavam e odeiam uns aos outros, se unissem, pois
neste caso o catalisador principal foi o desprezo ao "invasor judeu", somado ao
estabelecimento oficial do Estado de Israel na "terra de Alá", e acrescido pela
injusta e sangrenta ocupação dos territórios em 1967 e vigente até os dias de
hoje.
Essa união dos opostos só foi possível pela existência de um líder de facto e de
iure, cujo poder emanava do sangue judeu derramado nos atentados e nos
seqüestros e nas explosões de aviões, e se consolidava com o assassinato dos
atletas em Munich/72 e com o controle absoluto dos dinheiros bem e mal havidos
pela resistência palestina.
O processo de paz iniciado em Madri e culminado em Oslo foi, junto com o
anti-clímax de Camp David, o início do enfraquecimento de Arafat como líder,
porque parte importante do seu povo estava insatisfeita com a pobreza crescente
por um lado e pelo crescimento sistemático dos assentamentos pelo outro, e as
lideranças religiosas fundamentalistas souberam aproveitar a ocasião e começaram
a vender o seu discurso repleto de objetivos maximalistas, radicalizando assim
uma parte importante do tecido social palestino.
Grosso modo, a progressiva perda de poder de Arafat - promovida em grande parte
pela atuação do governo Sharon - interessado em fechar todas as portas possíveis
para um acordo de paz, já que ele e o seu partido não pretendem (como nunca
pretenderam) devolver a maioria dos territórios ocupados na margem ocidental do
rio Jordão) - agindo no sentido de desmantelar os instrumentos de poder da
Autoridade Nacional Palestina, como sejam a Polícia, a arrecadação de impostos,
o registro civil, a infra-estrutura rodoviária, fazendo com isso que as
mesquitas controladas pelos grupos religiosos mais radicais - até então
marginalizados do poder - assumissem um papel preponderante na "catequização" e
controle da população, dando início a uma guerra santa que fugiu ao controle da
OLP e da ANP, entidades laicas e majoritariamente anticlericais.
Ao contrário do desejado pelo governo atual de Israel - e a despeito do
tratamento dado a Arafat pelo governo israelense (mantendo-o "prisioneiro"
durante quase 3 anos na Mokata), o confinamento serviu para manter e aumentar o
simbolismo da sua figura, que agora, morto definitivamente o corpo, se
transformará num símbolo mítico e invencível, porque não há bombardeio seletivo
ou coletivo que o possa destruir ou eliminar do registro da História e do
imaginário coletivo do povo palestino e de muitos milhões no mundo que o usarão
como bandeira contra o governo de Israel, e, principalmente, contra o povo
judeu. E Ariel Sharon é um dos responsáveis por isso.
Hoje, sem Arafat nem líder que possa substituí-lo, dependerá única e
exclusivamente do pragmatismo que puder explicitar e fazer gala o governo
Sharon, que a morte de Arafat seja o fim de uma era manchada de sangue ou a
continuação incrementada da violência atual.
Tempos difíceis nos esperam, porque sem Arafat que segure pelo menos uma das
rédeas, o cavalo do terrorismo islâmico e do contraterrorismo de estado pode
desbocar-se e atropelar os últimos restos de esperança que ainda respiram nesse
cantinho do mundo.
Sou pessimista, porque troikas ou quartetos nunca serviram para bons propósitos,
mas muito pelo contrário, ajudaram a agudizar diferenças e promover lutas
intestinas que institucionalizaram o beco sem saída como programa de governo e a
desesperança como bandeira.
(13 de novembro/2004)
CooJornal
no 394
Bruno Kampel é analista político, poeta e
escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se
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