Bruno Kampel
POBRE PICASSO!...
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Pode parecer paradoxal, mas o fato
de ser daltônico, ou seja, a minha total incapacidade de identificar a presença
de algumas cores, animou-me a empreender a tarefa de pintar um quadro.
Assumida a responsabilidade que tal empreitada exigia, dei licença à criança
irreverente que vive num cantinho da minha memória para que escolhesse o pincel
e a aquarela, e nem bem os apresentei à tela virgem que curiosa aguardava sobre
o cavalete, os três incitaram-me numa só voz e com olhares implorantes a
“cometer” a minha primeira obra prima.
A puríssima brancura da tela transformou-se num simples fechar de olhos no
cenário sobre o qual tentaria que as cores confessassem as suas mais íntimas
verdades, e com o pincel bem guardado no bolso decidi começar a desenhar na
minha imaginação uma cena que merecesse a pena ser contada com a ajuda de todas
as cores do alfabeto e com a colaboração de todas as letras do arco-íris.
Aproximei-me à “cena do crime” e imediatamente assaltou-me uma lembrança do
passado em preto e branco que exigia um papel na obra que estava a ponto de ser
gerada, mas antes que eu pudesse responder-lhe ressoou uma voz saída do tubo de
tinta branca insinuando a sua mais firme oposição à simples possibilidade de que
o cinza lhe fizesse sombra ou que o preto invadisse os seus domínios.
Antes mesmo de encontrar uma resposta a tal desafio, constatei que da ponta do
pincel jorravam palavras e mais palavras sobre a esponja sedenta da minha
imaginação, a qual imediatamente as transformou num belíssimo espelho em prosa e
verso.
Apaguei a luz para poder ler o discurso que o espelho recitava, mas tão somente
pude ver refletida em seus cristais uma tela imaculadamente branca e virgem
esperando ser estuprada por um pincel abusado e indecente.
Aturdido pelo absurdo do momento zanguei-me com todas as cores, e imaginando o
resultado da mistura do vermelho com o perdão e do azul com a esperança e do
preto com o silêncio e do verde com o cansaço, finalmente terminei de pintar o
quadro que jamais será pintado.
Antes de retornar a cumprir a minha perpétua condena de germinar contos e
cinzelar poemas, aproximei-me da tela branca, e olhando-a com verdadeiro amor
paterno assinei o meu nome no canto inferior direito para que se saiba quem foi
o artista que conseguiu dizer tanto sem dizer nada. Confesso que me sinto
bastante orgulhoso da minha obra, à qual batizei com o nome de Arco Íris em Sol
maior para cegos, poetas e charlatães.
(18 de setembro/2004)
CooJornal
no 386
Bruno Kampel é analista político, poeta e
escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se
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