03/09/2004
Número - 384
- A carta
- A morte anônima
- A pátria
- A raposa e as uvas
- A relevância do assunto
- A soma que subtrai
- Acredite se puder
- Animais on line
- Ano novo judaico
- Aos jornalistas, poetas e escritores
- Armas de destruição em massa
- As fotografias
- Atrever-se
- Ausência
- Carnaval na Suécia
- Carta à la carte
- Círculo vicioso
- Círculo vicioso II
- Copyright or not copyright
- Descadastramento
- Europa: esquerda, volver!
- Fragrâncias de ontem
- Fugaz felicidade
- Herança maldita
- Hotel RioTotal Inn
- HTML. O homem cibernético
- Internet: ser sem estar
- Lula, o grande fiasco
- Lutando contra moinhos de vento
- Manifesto das ovelhas negras
- Mea culpa, mea máxima culpa
- O barulho
- O beijo
- O dedo na chaga
- O espelho
- Oriente médio
- Oito ou oitenta?
- Os deicidas atacam outra vez
- O Novo Mundo do Bem
- Oriente médio, nova proposta de paz
- Ou somamos, ou sumimos
- Parem o relógio
- Pesos e medidas
- Procurando agulhas no palheiro cibernético
- R.I.P
- Saudade
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Bruno Kampel
SETE DE SETEMBRO
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Eu aprendi que minha pátria não é uma alegoria vestida com bandeiras e enfeitada
com cinzelados escudos.
Eu aprendi que minha pátria não é uma ideologia unilateral ou uma filosofia
integral ou uma tomografia visceral.
Eu aprendi que no mapa de minha pátria não cabem nem quartéis nem traidores nem
profetas.
Eu aprendi que minha pátria é algo mais do que um pano com um sol ou com um
punhado de estrelas em cujo nome morrem sempre os mais pobres, os mais pretos,
os mais índios, enquanto os outros engalanam com bandeiras de todas as cores
seus ajardinados e bem cuidados orgulhos.
Eu aprendi que em minha pátria há lugar para todos menos para os seus verdugos,
porque eles vivem pendentes do momento de poder agarrar as rédeas, usando como
argumento legitimador gritos ou demagogia, tiros ou mentiras, fraude eleitoral
ou cruentas quarteladas.
Eu aprendi que minha pátria não é um hino, mas que é tudo menos isso, porque ao
compasso de seus acordes se mata sem direito e se morre sem motivo.
Eu aprendi que minha pátria nem sequer é o fiel reflexo de sua História, porque
o passado é uma meia verdade - que é a pior de todas as mentiras - que se conta
segundo o pensar e o entender de quem o faça.
Eu aprendi que minha pátria é um pequeno grande espaço de liberdade ocupado por
gente como a gente, que somada resulta num país no qual cabe quase tudo menos a
prepotência dos que tentam defini-lo ao seu gosto e apropriar-se do direito de
decidir quem faz ou não parte dele.
Eu aprendi que a outra pátria que não é minha - cuja geografia é o produto de
lutas fratricidas ao longo dos séculos - necessita soldados que requerem fuzis e
um tenente que os dirija, e esse tenente carece de superiores que o instruam e
uma carreira militar que o forme e um futuro que lhe ofereça como isca o
generalato na linha de chegada. E assim, essa pátria que não é minha tem que
parir um exército que precisa tanques e aviões e regimentos e heróis, e então o
suado dinheiro da gente não mais se destina a hospitais ou escolas, a livros ou
medicamentos, mas à compra de modernos aviões de combate ou ao pagamento da
fatura da fábrica norte-americana de canhões e de bombas cada vez mais
inteligentes.
Mas isso não é tudo. Eu aprendi que essa pátria que não é a minha necessita uma
estrutura burocrática para arrecadar impostos e impor condutas, e assim é que
surgem os governos famintos de poder e de glória, e a conta do banquete é a
gente que não come quem a paga.
Eu aprendi que minha pátria é meu idioma, minhas circunstâncias e meu entorno,
onde não cabe mais do que uma trinca de amigos verdadeiros, trinta e três
parentes, cento setenta e oito conhecidos, um território de oito ou nove
quarteirões, alguns edifícios e paisagens, um par de árvores com seus
passarinhos, uma praça com seus pombos borboletas e jasmins, uma infância cheia
de mistérios e de risos e de amigos, um ontem cheio de terraços e janelas
habitados por grandes e pequenos vasos carregados de gerânios, e também as
impressões digitais que os dias e suas noites vão imprimindo em meu registro
sensitivo.
Eu aprendi que minha pátria não tem pátria, porque é um tremor bem no fundo do
peito, um calar de emoção, um poema insonoro, um silêncio de felicidade, um
mutismo de alegria, um discurso sem palavras, um amor sem receita, um ser parte
de um todo que é parte de cada um.
Eu aprendi que na minha pátria não há heróis que mereçam estátuas, a não ser os
pobres explorados, as crianças sem futuro, os tantos sem sequer um nome e
sobrenome pelo qual serem chamados.
Eu aprendi que na minha pátria não cabe nenhuma pátria que se aprenda nas
escolas, nenhuma pátria que se ensine nos templos religiosos, nenhuma pátria que
se imparta nos quartéis, nenhuma pátria que se venda nos quiosques, nenhuma
pátria negociável na Bolsa de Valores.
Eu aprendi que sou eu quem escolhe a minha pátria, e não a pátria quem me
escolhe.
Sim, eu aprendi a decidir hora por hora, dia-a-dia, sonho sobre sonho, agonia
após agonia, esperança atrás de esperança, lágrima com lágrima, que minha pátria
é a vida e seus atores; que minha pátria é a gente e suas fronteiras; que meus
braços são a pátria de todos os meus abraços e minhas mãos a pátria de todas os
meus afagos.
Aprendi que sou ela, porque eu a inventei na minha vivência, porque eu a escolhi
na minha experiência, porque eu a aceitei nas minhas entranhas, porque sim,
porque sou o pai e o filho de minha pátria, dessa pátria na qual sou o cacique e
o índio, o general e o soldado, o produto e o fator, um verdadeiro cidadão de
primeira.
Essa é a minha pátria. Essa é a minha única pátria. A outra, não é nem pátria nem
minha.
(Pobre de nós se deixarmos que os fabricantes da desventura nos roubem o direito
à utopia e a sonhar e a viver a pátria que mais gostemos).
(03 de setembro/2004)
CooJornal
no 384
Bruno Kampel é analista político, poeta e
escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm
Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br
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