Como sempre quando são muitos, os mortos inocentes não têm nome nem sobrenome do
qual possamos agarrar-nos para retê-los na memória coletiva dos sobreviventes.
Um número os define e uma data os representa. Duzentos em Madri no dia de março
de 2004. Uns três mil em Nova Iorque no 11 de setembro de 2001; trinta mil
desaparecidos na ditadura argentina de 76 a 83; dois milhões de mortos pela fome
na África todos os anos; seis milhões no Holocausto made in Hitler de 39 a 45.
Uma data e um número que apenas aqueles que têm alguém muito próximo
atrincheirado sob esse epitáfio matemático sabem transformá-lo no nome do seu
morto predileto.
Os culpados como sempre dividem-se em castas de todas as espécies. Os párias que
colocam a bomba ou disparam os foguetes. Os sargentos e tenentes que os treinam.
Os capitães que os armam. Os generais que lhes emprestam a tática e a
estratégia. Os gurus que os catequizam. Os políticos que lhes oferecem as
consignas. A História mal contada que lhes presenteia os motivos.
Seus nomes ou siglas são um detalhe de somenos importância. Servirá o que melhor
atenda aos interesses do momento e aos manda-chuvas de turno.
Será ETA na Espanha enquanto o poder ache que serve para ganhar as eleições.
Será Al Qaida em qualquer lugar do mundo enquanto Bush e Tony Blair e seus
asseclas menos votados lhes interesse continuar assustando ao mundo, como se Al
Qaida não se bastasse a si própria para manter aceso o medo de todos nós de
morrer antes da hora. Serão os comunistas quando os capitalistas procurem um
bode expiatório para poder iniciar uma nova carnificina, e serão os capitalistas
quando os comunistas queiram fabricar responsáveis pela massacre que eles
próprios estão organizando. Serão as FARC quando o governo da Colômbia as use
para ocultar seus próprios crimes, e será o governo da Colômbia quando as FARC
quiserem vingar esses assassinatos. Serão os judeus quando convenha aos que não
se conformam com a existência do Estado de Israel, e será o povo palestino
quando o que realmente se queira é inviabilizar a criação de um Estado soberano
que lhes sirva de pátria. Será a defesa da Liberdade quando queiram apossar-se
do petróleo alheio, e será a proteção da Democracia quando o que de fato se
queira é acabar com ela.
Como sempre, e sejam quais forem os assassinos, o impacto dos massacres durará
menos do que as suas vítimas merecem, porque a vida encarrega-se sempre de
passar um pano molhado sobre a realidade e pendurar nas manchetes algum assunto
que as enterre para sempre, como por exemplo um cantor de moda que se divorcie
ou uma princesa que morra assassinada; um casamento entre famosos ou a estréia
do filme longamente esperado; a festinha na casa de amigos ou a chegada do
sábado à noite; o chopinho no boteco da esquina, o salário depositado na conta,
uma boa piada ou a final do campeonato. E então - sem que tenhamos reparado -
Inês é morta.
Sim, não nos enganemos. No melhor dos casos a eternidade dura como máximo um par
de dias. Depois ela é fria e despiadadamente metamorfoseada pela tipografia que
imprime os livros de História, amortalhando-a com frases feitas e a enterrando-a
para sempre na bainha das meias verdades nalgum canto perdido do cemitério
nacional das versões oficiais dos fatos.
Dizem os que sabem, que há longas filas de fanáticos esperando o momento de
mostrar a cara no trem ou no ônibus ou no avião quando o promotor da carnificina
julgar chegado o momento oportuno de que em nome de Alá ou de Deus ou de Elohim
ou da Paz ou da Democracia ou do diabo que os carregue - os emissários da
maldade transformem o tudo em nada, o trem e o ônibus e o avião em cemitério
coletivo, e o futuro em miragem, e a esperança em fracasso.
Isso é o que dizem os que pensam que sabem o que dizem, enquanto que nós,
anônimos passageiros deste trem e deste ônibus e deste avião, o único que
desejamos é viajar para chegar em paz ao nosso destino.
(02 de julho/2004)
CooJornal
no 375