02/07/2004
Número - 375


 
Bruno Kampel



FUGAZ ETERNIDADE

 

Como sempre quando são muitos, os mortos inocentes não têm nome nem sobrenome do qual possamos agarrar-nos para retê-los na memória coletiva dos sobreviventes.

Um número os define e uma data os representa. Duzentos em Madri no dia de março de 2004. Uns três mil em Nova Iorque no 11 de setembro de 2001; trinta mil desaparecidos na ditadura argentina de 76 a 83; dois milhões de mortos pela fome na África todos os anos; seis milhões no Holocausto made in Hitler de 39 a 45.

Uma data e um número que apenas aqueles que têm alguém muito próximo atrincheirado sob esse epitáfio matemático sabem transformá-lo no nome do seu morto predileto.

Os culpados como sempre dividem-se em castas de todas as espécies. Os párias que colocam a bomba ou disparam os foguetes. Os sargentos e tenentes que os treinam. Os capitães que os armam. Os generais que lhes emprestam a tática e a estratégia. Os gurus que os catequizam. Os políticos que lhes oferecem as consignas. A História mal contada que lhes presenteia os motivos.

Seus nomes ou siglas são um detalhe de somenos importância. Servirá o que melhor atenda aos interesses do momento e aos manda-chuvas de turno.

Será ETA na Espanha enquanto o poder ache que serve para ganhar as eleições. Será Al Qaida em qualquer lugar do mundo enquanto Bush e Tony Blair e seus asseclas menos votados lhes interesse continuar assustando ao mundo, como se Al Qaida não se bastasse a si própria para manter aceso o medo de todos nós de morrer antes da hora. Serão os comunistas quando os capitalistas procurem um bode expiatório para poder iniciar uma nova carnificina, e serão os capitalistas quando os comunistas queiram fabricar responsáveis pela massacre que eles próprios estão organizando. Serão as FARC quando o governo da Colômbia as use para ocultar seus próprios crimes, e será o governo da Colômbia quando as FARC quiserem vingar esses assassinatos. Serão os judeus quando convenha aos que não se conformam com a existência do Estado de Israel, e será o povo palestino quando o que realmente se queira é inviabilizar a criação de um Estado soberano que lhes sirva de pátria. Será a defesa da Liberdade quando queiram apossar-se do petróleo alheio, e será a proteção da Democracia quando o que de fato se queira é acabar com ela.

Como sempre, e sejam quais forem os assassinos, o impacto dos massacres durará menos do que as suas vítimas merecem, porque a vida encarrega-se sempre de passar um pano molhado sobre a realidade e pendurar nas manchetes algum assunto que as enterre para sempre, como por exemplo um cantor de moda que se divorcie ou uma princesa que morra assassinada; um casamento entre famosos ou a estréia do filme longamente esperado; a festinha na casa de amigos ou a chegada do sábado à noite; o chopinho no boteco da esquina, o salário depositado na conta, uma boa piada ou a final do campeonato. E então - sem que tenhamos reparado - Inês é morta.

Sim, não nos enganemos. No melhor dos casos a eternidade dura como máximo um par de dias. Depois ela é fria e despiadadamente metamorfoseada pela tipografia que imprime os livros de História, amortalhando-a com frases feitas e a enterrando-a para sempre na bainha das meias verdades nalgum canto perdido do cemitério nacional das versões oficiais dos fatos.

Dizem os que sabem, que há longas filas de fanáticos esperando o momento de mostrar a cara no trem ou no ônibus ou no avião quando o promotor da carnificina julgar chegado o momento oportuno de que em nome de Alá ou de Deus ou de Elohim ou da Paz ou da Democracia ou do diabo que os carregue - os emissários da maldade transformem o tudo em nada, o trem e o ônibus e o avião em cemitério coletivo, e o futuro em miragem, e a esperança em fracasso.

Isso é o que dizem os que pensam que sabem o que dizem, enquanto que nós, anônimos passageiros deste trem e deste ônibus e deste avião, o único que desejamos é viajar para chegar em paz ao nosso destino.


(02 de julho/2004)
CooJornal no 375


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
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Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br