"Tenho um princípio do qual não abro mão: sempre
que posso publico um pequeno texto ou poema que não fale nem da paz nem da
guerra; nem das bombas inteligentes ou dos assassinatos seletivos; nem da
democracia ou do totalitarismo, e muito menos da bandidagem que governa o
dia-a-dia de metade do mundo, mas que seja apenas e simplesmente uma tomografia
virtual do nosso ser interior, para que não esqueçamos que muito mais do que
imaginamos; que muito além das ideologias e dos dogmas e dos programas e dos
projetos, somos apenas o poucomuitotudo que somos: crianças cheias de medo e de
ternura brincando de adultos fantasiados de guerreiros ou profetas.
Penso que a moral desta historieta pode ser aplicada por analogia a todos e a
quase tudo: a palestinos e judeus, a israelenses e sírios, a Sharon e a Bush, a
Lula e ACM, a Saddam e Blair, à raposa e às uvas, a deus e ao diabo, a oito e a
oitenta, a cara e a coroa, a Tom & Jerry.
Escolho então o cenário que o papel em branco me proporciona e publico um
continho escrito por uma das tantas crianças que me habitam, e o dedico a todos
os adultos que tentamos ser aquilo que sonhamos que somos e não aquilo que a
realidade exige que sejamos".
* * * * *
Assim começou o problema que deixou em polvorosa a quase todos os moradores do
meu jardim, e conste que o contarei sem omitir nenhum detalhe para que fique
claro o que realmente aconteceu, tentando evitar que as más línguas comecem a
espalhar versões falsificadas da história.
Pois bem, tudo iniciou-se quando recebi pelos canais eletrônicos do aparelho
cibernético uma mensagem que dizia: " Um dia pode também começar com um beijo.
Aqui vai o meu ".
Assim chegou o beijo - carregado de calor e ternura - à janela do meu
computador. Foi o princípio de tudo. Lá ficou ele dançando e emitindo o seu
convite enquanto eu admirava seus contornos delicados, a sua tessitura, e
pensava qual seria o melhor destino para ele: transformá-lo em quadro e
pendurá-lo na parede principal da minha sensibilidade?... Fotografá-lo, e assim
levar o seu retrato na carteira que carrego no bolso traseiro da minha
ternura?.. Ou usá-lo, e depois apenas lembrar do seu sabor e do seu aroma?...
Enquanto pensava no destino que lhe daria, não deixava de espreitá-lo com o rabo
dos olhos, e foi então quando notei que ele também estava a me lançar olhares
cintilantes desde a tela iluminada.
Dei tratos à bola à procura de uma fórmula capaz de fazer com que o beijo me
sorrisse, e tentando um cafuné de apresentação instalei no ar uma música acorde
com o evento - um prelúdio de Chopin - desejando que os acordes carregados de
serenidade o fizessem abandonar o mundo virtual desde o qual me olhava e se
integrasse na realidade circundante.
Poderão então avaliar o tamanho da minha surpresa quando o beijo, com movimentos
sinuosos, elásticos, pulou para fora da sua prisão eletrônica e iniciou uma
espécie de dança insinuante e sugestiva, e num abrir e fechar de olhos correu
até a janela desde a qual, olhando-se através dos cristais embaciados pelo vapor
congelado, divisava-se o exterior completamente coberto pelo frio e pela neve, e
num passe de mágica apareceu do lado de fora, entre os flocos brancos e os
pássaros negros, esses mesmos pássaros que escolheram os braços amigos das
árvores do meu jardim para neles passarem o inverno.
Eis que de repente, e sem o meu consentimento, o beijo que me havia sido enviado
desde as antípodas tropicais e que célere tinha viajado desde a boca amiga até a
tela iluminada, fugia de mim e pedia asilo no primeiro galho que encontrava no
caminho!
Tomado de surpresa ao princípio, e agindo sem perda de tempo logo que entendi o
que havia acontecido, comecei a espreitar através da janela, até que finalmente
consegui localizá-lo no exato momento em que alguns pássaros da neve - os que
habitavam na árvore que o beijo escolhera como ninho - ficavam a olhá-lo com
curiosidade, e pouco a pouco iam aproximando-se e agrupando-se ao seu redor.
Para dizer a verdade, só depois de analisar o fato é que imaginei a razão:
certamente os pássaros sentiram o calor que o beijo amigo irradiava e não
acharam melhor antídoto para o frio do que aproximar-se o máximo possível.
Como é fácil de imaginar fiquei com muita raiva, pois o beijo era meu e o queria
de volta custasse o que custasse, e fiz o que qualquer um teria feito em meu
lugar: encapotei-me com os agasalhos que o frio alucinante exigia para a
ocasião, e lá fui reclamar os meus direitos.
Doce ingenuidade a minha!... Os pássaros, reunidos em Assembléia, fizeram que
voltasse rapidamente à realidade, pois acabavam de declarar o beijo uma questão
de vida ou morte, de paz ou guerra, e no decreto por eles votado punia-se com
severas penas a todos aqueles que violassem a referida legislação.
Mesmo que estivesse quase paralisado pelo frio e pela injusta decisão da
Assembléia, ainda tentei argumentar para fazer valer os meus direitos, usando
toda a minha capacidade retórica, mas foi totalmente em vão, e além de não ter
conseguido trazer de volta o beijo, ainda por cima ganhei de presente um belo
resfriado.
Desde então, e com o passar das horas e dos dias, cumpriu-se o ditado que diz
que o ser humano a tudo se acostuma, pois muito a contragosto consegui aceitar o
fato de que o beijo que me fora mandado com carinho e com a recomendação
expressa de misturá-lo no meu perfume fosse apenas uma imagem, ou pior ainda,
uma miragem na minha janela. Pouco a pouco fui também perdendo os ciúmes dos
pássaros que usufruíam do seu calor e ternura, e aceitando a nova realidade
conformei-me com contemplar através dos cristais da janela como o beijo aceitava
os afagos das aves, suas novas companheiras.
Pouco a pouco fui também notando - não sem uma certa dose de estupefação - que a
primavera adiantara a sua chegada, pois dia a dia a neve retirava-se mais um
pouco e o chão deixava entrever o esverdear da grama antes sepultada pelo manto
branco.
O interessante e inaudito era que o meu jardim florescia no inverno. As árvores
punham para fora as suas folhas, as suas flores, os seus aromas de verão.
Foi aí que os vizinhos - sem dúvida movidos pela inveja - começaram a
queixar-se. Uns lamentavam que seus pássaros emigraram para o meu jardim,
deixando as suas árvores órfãs. Outros queixavam-se que não era justo o meu
jardim explodir em verde e vida enquanto o deles dormia num letargo paralisante
e costumeiro.
O alvoroço foi tamanho que a única alternativa que teve o Prefeito foi reunir o
Conselho da Cidade para decidir o que fazer, quais os passos a dar, pois
julgavam que o beijo que governava o meu jardim estava provocando uma grave
alteração nos frios hábitos locais.
A tal da reunião - levada a cabo sem demora - durou muitas horas, e finalmente o
porta-voz da cidade veio até a minha casa trazendo a decisão, e sem mediar uma
só palavra entregou-me uma maçaroca de papéis, e calado como chegou, partiu.
Eu, curiosíssimo, e por que não dizer, um pouco temeroso, fui imediatamente até
o quarto que usava como escritório, sentei-me comodamente na minha poltrona
preferida, e comecei a ler a "sentença".
Confesso que bastou ler o texto da primeira página - que era um resumo da
decisão do Conselho da Cidade - para ficar surpreso pelo conteúdo, já que além
de trazer uma ameaça implícita caso não resolvesse a contento e no prazo de 24
horas o problema surgido, consegui descobrir escondida e subentendida nas
entrelinhas uma possível via para resolver o caso de forma amigável, rápida e
benéfica para todas as partes envolvidas. Sim. Para que tudo fosse resolvido
bastava apenas que eu realizasse um milagre. Um verdadeiro milagre. Nem mais nem
menos. A idéia era tão mas tão absurda, que por isso poderia até dar certo, e
sem perder tempo comecei a usar o computador, valendo-me de tanto em tanto dos
dados escritos nas folhas que havia recebido das mãos do porta-voz do Conselho
da Cidade.
E assim fui escrevendo e escrevendo, ou melhor, digitando e digitando e
digitando, horas a fio, possuído por uma mistura de esperança e descrença, até
que quase no fim do empreendimento fui vencido pelo cansaço imenso que chegou
sem ter sido convidado, e adormeci sentado, usando os papéis como travesseiro e
o suave crepitar das chamas na lareira como canção de ninar.
Para ser honesto, não sei dizer quanto tempo fiquei assim, mas o que sim lembro
e muito bem lembrado, é que fui acordado pelo pregão tão conhecido nestas bandas
do norte do mundo, do vendedor ambulante. Sim, pouco a pouco fui assimilando o
sentido do grito que entrava pela janela, trazendo no seu eco uma mensagem que,
levando-se em consideração o fato de que estávamos na metade do mais rigoroso
inverno dos últimos tempos - com temperaturas que faziam que até o próprio
inverno morresse de frio - não era muito apropriado. Eis que o vento trazia para
junto da minha janela o refrão repetitivo: "Sorveteeeiro!. Sorveteeeiro!.
Sorveteeeiro!.".
Mais do que depressa corri até a janela, e o que mais me impactou não foi a
presença do senhor gordinho e bronzeado vendendo picolés, mas o jardim em flor,
o lago coalhado de pequenas canoas e barquinhos repletos de crianças, os
passarinhos cantando sem parar, e o principal de tudo, o termômetro marcando 28
graus!!!...
Bati duas ou três vezes no meu rosto para saber se estava acordado ou ainda
dormia sobre a mesa do computador, e a resposta dolorida provou que estava mais
do que bem acordado.
Nesse momento comecei a refletir, tentando pôr as idéias em ordem, e após alguns
instantes considerei que só podia ser que o tal do milagre havia acontecido. E
eu então, pobre descrente, não sabia mais em quê acreditar, pois até o dia
anterior tinha certeza de que milagres não existiam!
O que sim fiz mais do que depressa foi vestir a primeira roupa de verão sem
cheiro de naftalina que achei no fundo do armário, e logo saí célere a pesquisar
os arredores.
Cruzei com os primeiros vizinhos - os quais até o dia anterior nem sequer me
cumprimentavam - e que agora abanavam a mão num gesto amistoso.
No centro da cidadezinha, cartazes coloridos anunciavam uma parada festiva para
as horas vespertinas - com banda de música e tudo - e assim por diante.
Atônito e suado, parei e apoiei o corpo numa das árvores da praça principal, e
disse para os meus botões: "deu certo! consegui!! sou o maior!! sou um gênio!".
Voltei para minha casa quase correndo, apanhei os papéis que recebera do
porta-voz - sem esquecer as anotações que fizera à medida em que fora usando as
informações - e voltei ao centro para tratar de averiguar o resultado que o meu
trabalho noturno tinha produzido não na cidade em si, que isso já o estava
vendo, mas nos seres humanos.
Foi nem bem chegar às ruas mais movimentadas e constatar sem nenhuma dúvida que
a receita funcionara. Não apenas as árvores e os jardins e as praças, mas também
as pessoas floresceram. Em cada rosto - habitualmente sério e carrancudo -
germinara um sorriso esplêndido, instalando definitivamente a primavera no
caráter invernal dos habitantes da cidade.
Enquanto caminhava em direção à Prefeitura pensava e concluía que mais uma vez
ficara provada a teoria de que a amizade não conhece fronteiras nem respeita
barreiras, pois se assim não fosse nenhum dos meus amigos virtuais aos quais
mandei uma cartinha pelo computador contando o meu problema e pedindo que me
ajudassem, o teria feito tão rapidamente e de forma tão efetiva.
Pois bem, sei que parece incrível, mas essa é a minha história, tintim por
tintim, sem pôr nem tirar. O único que posso acrescentar é que hoje cada árvore,
cada pessoa da cidade, usufrui de um beijo como o que um dia foi meu, e isso -
como já o disse e não me cansarei de o repetir - só foi possível graças à
amizade de tantos e tantas, tão queridos e queridas, que ao tomarem conhecimento
do beco sem saída em que tinha entrado, aceitaram colaborar, mandando um beijo
igualzinho ao que eu recebera, ao endereço eletrônico de cada um dos habitantes
da cidade. Um beijo amável e sincero, com lábios transmissores de ternura e
amizade, úmidos de felicidade e vermelhos de alegria.
Hoje dá gosto ver os beijos reunidos numa das árvores contando-se uns aos outros
histórias que os fazem rir até as lágrimas, mas nas quais nenhum deles realmente
acredita.
A preferida, que é a que mais hilaridade provoca - talvez por ser a mais
inverossímil - é aquela que conta o caso de um beijo que um dia escapou do
destino que lhe haviam traçado e saiu por aí derretendo as neves que tudo
cobriam e destruindo o frio que tudo matava.
É um verdadeiro prazer ouvir a tantos beijos rindo a boca solta de história tão
sem sentido. "I-ma-giii-na", pode-se ouvir em todas as árvores de quase todas as
esquinas: "um beijo derretendo a neeeeve, aniquilando o friiiio! Pooooxa!.
quanta imaginação!... pois o frio e a neve não existem, não é?... nem nunca
existiram, e o que é melhor, jamais existirão!!"...
E assim os beijos e os pássaros e as árvores e os jardins e as praças e os
parques e os vizinhos viveram felizes por muitos e muitos anos, e sem dúvida
continuarão a fazê-lo por muitos e muitos mais, enquanto que a minha história,
que é tão verdadeira como a existência dos discos voadores e do homem invisível,
aqui termina.
Só me resta fazer uma última oferta, que espero a aceitem sem receio: "mando um
grande beijo para cada um de vocês, e os convido a fazer um número ilimitado de
cópias e com elas inundar o amanhecer dos amigos e o jardim dos vizinhos,
transformando o inóspito espaço cibernético num aconchegante ponto de encontro;
num retumbante sorriso sem palavras; numa inesgotável fonte de esperanças".
(14 de maio/2004)
CooJornal
no 368