14/05/2004
Número - 368


 
Bruno Kampel



O BEIJO

 

"Tenho um princípio do qual não abro mão: sempre que posso publico um pequeno  texto ou poema  que não fale nem da paz  nem da guerra; nem das bombas inteligentes ou dos assassinatos seletivos; nem da democracia ou do totalitarismo, e  muito menos da bandidagem que governa o dia-a-dia de metade do mundo, mas que seja apenas e simplesmente uma tomografia virtual do nosso ser interior, para que não esqueçamos que muito mais do que imaginamos; que muito além das ideologias e dos dogmas e dos programas e dos projetos, somos apenas o poucomuitotudo que somos: crianças cheias de medo e de ternura brincando de adultos fantasiados de guerreiros ou profetas.
Penso que a moral desta historieta  pode ser aplicada por analogia a todos e a quase tudo: a palestinos e judeus, a israelenses e sírios, a Sharon e a Bush, a Lula e ACM, a Saddam e Blair, à raposa e às uvas, a deus e ao diabo, a oito e a oitenta, a cara e a coroa, a Tom & Jerry.
Escolho então o cenário que o papel em branco me proporciona e publico um continho  escrito por uma das tantas crianças que me habitam, e o dedico a todos os adultos que tentamos ser aquilo que sonhamos que somos e não aquilo que a realidade exige que sejamos".

* * * * *

Assim começou o problema que deixou em polvorosa a quase todos os moradores do meu jardim, e conste que o contarei sem omitir nenhum detalhe para que fique claro o que realmente aconteceu, tentando evitar que as más línguas comecem a espalhar versões falsificadas da história.

Pois bem, tudo iniciou-se quando recebi pelos canais eletrônicos do aparelho cibernético uma mensagem que dizia: " Um dia pode também começar com um beijo. Aqui vai o meu ".

Assim chegou o beijo - carregado de calor e ternura - à janela do meu computador. Foi o princípio de tudo. Lá ficou ele dançando e emitindo o seu convite enquanto eu admirava seus contornos delicados, a sua tessitura, e pensava qual seria o melhor destino para ele: transformá-lo em quadro e pendurá-lo na parede principal da minha sensibilidade?... Fotografá-lo, e assim levar o seu retrato na carteira que carrego no bolso traseiro da minha ternura?.. Ou usá-lo, e depois apenas lembrar do seu sabor e do seu aroma?...

Enquanto pensava no destino que lhe daria, não deixava de espreitá-lo com o rabo dos olhos, e foi então quando notei que ele também estava a me lançar olhares cintilantes desde a tela iluminada.

Dei tratos à bola à procura de uma fórmula capaz de fazer com que o beijo me sorrisse, e tentando um cafuné de apresentação instalei no ar uma música acorde com o evento - um prelúdio de Chopin - desejando que os acordes carregados de serenidade o fizessem abandonar o mundo virtual desde o qual me olhava e se integrasse na realidade circundante.

Poderão então avaliar o tamanho da minha surpresa quando o beijo, com movimentos sinuosos, elásticos, pulou para fora da sua prisão eletrônica e iniciou uma espécie de dança insinuante e sugestiva, e num abrir e fechar de olhos correu até a janela desde a qual, olhando-se através dos cristais embaciados pelo vapor congelado, divisava-se o exterior completamente coberto pelo frio e pela neve, e num passe de mágica apareceu do lado de fora, entre os flocos brancos e os pássaros negros, esses mesmos pássaros que escolheram os braços amigos das árvores do meu jardim para neles passarem o inverno.

Eis que de repente, e sem o meu consentimento, o beijo que me havia sido enviado desde as antípodas tropicais e que célere tinha viajado desde a boca amiga até a tela iluminada, fugia de mim e pedia asilo no primeiro galho que encontrava no caminho!

Tomado de surpresa ao princípio, e agindo sem perda de tempo logo que entendi o que havia acontecido, comecei a espreitar através da janela, até que finalmente consegui localizá-lo no exato momento em que alguns pássaros da neve - os que habitavam na árvore que o beijo escolhera como ninho - ficavam a olhá-lo com curiosidade, e pouco a pouco iam aproximando-se e agrupando-se ao seu redor.

Para dizer a verdade, só depois de analisar o fato é que imaginei a razão: certamente os pássaros sentiram o calor que o beijo amigo irradiava e não acharam melhor antídoto para o frio do que aproximar-se o máximo possível.

Como é fácil de imaginar fiquei com muita raiva, pois o beijo era meu e o queria de volta custasse o que custasse, e fiz o que qualquer um teria feito em meu lugar: encapotei-me com os agasalhos que o frio alucinante exigia para a ocasião, e lá fui reclamar os meus direitos.

Doce ingenuidade a minha!... Os pássaros, reunidos em Assembléia, fizeram que voltasse rapidamente à realidade, pois acabavam de declarar o beijo uma questão de vida ou morte, de paz ou guerra, e no decreto por eles votado punia-se com severas penas a todos aqueles que violassem a referida legislação.

Mesmo que estivesse quase paralisado pelo frio e pela injusta decisão da Assembléia, ainda tentei argumentar para fazer valer os meus direitos, usando toda a minha capacidade retórica, mas foi totalmente em vão, e além de não ter conseguido trazer de volta o beijo, ainda por cima ganhei de presente um belo resfriado.

Desde então, e com o passar das horas e dos dias, cumpriu-se o ditado que diz que o ser humano a tudo se acostuma, pois muito a contragosto consegui aceitar o fato de que o beijo que me fora mandado com carinho e com a recomendação expressa de misturá-lo no meu perfume fosse apenas uma imagem, ou pior ainda, uma miragem na minha janela. Pouco a pouco fui também perdendo os ciúmes dos pássaros que usufruíam do seu calor e ternura, e aceitando a nova realidade conformei-me com contemplar através dos cristais da janela como o beijo aceitava os afagos das aves, suas novas companheiras.
Pouco a pouco fui também notando - não sem uma certa dose de estupefação - que a primavera adiantara a sua chegada, pois dia a dia a neve retirava-se mais um pouco e o chão deixava entrever o esverdear da grama antes sepultada pelo manto branco.

O interessante e inaudito era que o meu jardim florescia no inverno. As árvores punham para fora as suas folhas, as suas flores, os seus aromas de verão.

Foi aí que os vizinhos - sem dúvida movidos pela inveja - começaram a queixar-se. Uns lamentavam que seus pássaros emigraram para o meu jardim, deixando as suas árvores órfãs. Outros queixavam-se que não era justo o meu jardim explodir em verde e vida enquanto o deles dormia num letargo paralisante e costumeiro.

O alvoroço foi tamanho que a única alternativa que teve o Prefeito foi reunir o Conselho da Cidade para decidir o que fazer, quais os passos a dar, pois julgavam que o beijo que governava o meu jardim estava provocando uma grave alteração nos frios hábitos locais.

A tal da reunião - levada a cabo sem demora - durou muitas horas, e finalmente o porta-voz da cidade veio até a minha casa trazendo a decisão, e sem mediar uma só palavra entregou-me uma maçaroca de papéis, e calado como chegou, partiu.

Eu, curiosíssimo, e por que não dizer, um pouco temeroso, fui imediatamente até o quarto que usava como escritório, sentei-me comodamente na minha poltrona preferida, e comecei a ler a "sentença".

Confesso que bastou ler o texto da primeira página - que era um resumo da decisão do Conselho da Cidade - para ficar surpreso pelo conteúdo, já que além de trazer uma ameaça implícita caso não resolvesse a contento e no prazo de 24 horas o problema surgido, consegui descobrir escondida e subentendida nas entrelinhas uma possível via para resolver o caso de forma amigável, rápida e benéfica para todas as partes envolvidas. Sim. Para que tudo fosse resolvido bastava apenas que eu realizasse um milagre. Um verdadeiro milagre. Nem mais nem menos. A idéia era tão mas tão absurda, que por isso poderia até dar certo, e sem perder tempo comecei a usar o computador, valendo-me de tanto em tanto dos dados escritos nas folhas que havia recebido das mãos do porta-voz do Conselho da Cidade.

E assim fui escrevendo e escrevendo, ou melhor, digitando e digitando e digitando, horas a fio, possuído por uma mistura de esperança e descrença, até que quase no fim do empreendimento fui vencido pelo cansaço imenso que chegou sem ter sido convidado, e adormeci sentado, usando os papéis como travesseiro e o suave crepitar das chamas na lareira como canção de ninar.

Para ser honesto, não sei dizer quanto tempo fiquei assim, mas o que sim lembro e muito bem lembrado, é que fui acordado pelo pregão tão conhecido nestas bandas do norte do mundo, do vendedor ambulante. Sim, pouco a pouco fui assimilando o sentido do grito que entrava pela janela, trazendo no seu eco uma mensagem que, levando-se em consideração o fato de que estávamos na metade do mais rigoroso inverno dos últimos tempos - com temperaturas que faziam que até o próprio inverno morresse de frio - não era muito apropriado. Eis que o vento trazia para junto da minha janela o refrão repetitivo: "Sorveteeeiro!. Sorveteeeiro!. Sorveteeeiro!.".

Mais do que depressa corri até a janela, e o que mais me impactou não foi a presença do senhor gordinho e bronzeado vendendo picolés, mas o jardim em flor, o lago coalhado de pequenas canoas e barquinhos repletos de crianças, os passarinhos cantando sem parar, e o principal de tudo, o termômetro marcando 28 graus!!!...

Bati duas ou três vezes no meu rosto para saber se estava acordado ou ainda dormia sobre a mesa do computador, e a resposta dolorida provou que estava mais do que bem acordado.

Nesse momento comecei a refletir, tentando pôr as idéias em ordem, e após alguns instantes considerei que só podia ser que o tal do milagre havia acontecido. E eu então, pobre descrente, não sabia mais em quê acreditar, pois até o dia anterior tinha certeza de que milagres não existiam!

O que sim fiz mais do que depressa foi vestir a primeira roupa de verão sem cheiro de naftalina que achei no fundo do armário, e logo saí célere a pesquisar os arredores.

Cruzei com os primeiros vizinhos - os quais até o dia anterior nem sequer me cumprimentavam - e que agora abanavam a mão num gesto amistoso.

No centro da cidadezinha, cartazes coloridos anunciavam uma parada festiva para as horas vespertinas - com banda de música e tudo - e assim por diante.
Atônito e suado, parei e apoiei o corpo numa das árvores da praça principal, e disse para os meus botões: "deu certo! consegui!! sou o maior!! sou um gênio!".

Voltei para minha casa quase correndo, apanhei os papéis que recebera do porta-voz - sem esquecer as anotações que fizera à medida em que fora usando as informações - e voltei ao centro para tratar de averiguar o resultado que o meu trabalho noturno tinha produzido não na cidade em si, que isso já o estava vendo, mas nos seres humanos.

Foi nem bem chegar às ruas mais movimentadas e constatar sem nenhuma dúvida que a receita funcionara. Não apenas as árvores e os jardins e as praças, mas também as pessoas floresceram. Em cada rosto - habitualmente sério e carrancudo - germinara um sorriso esplêndido, instalando definitivamente a primavera no caráter invernal dos habitantes da cidade.

Enquanto caminhava em direção à Prefeitura pensava e concluía que mais uma vez ficara provada a teoria de que a amizade não conhece fronteiras nem respeita barreiras, pois se assim não fosse nenhum dos meus amigos virtuais aos quais mandei uma cartinha pelo computador contando o meu problema e pedindo que me ajudassem, o teria feito tão rapidamente e de forma tão efetiva.

Pois bem, sei que parece incrível, mas essa é a minha história, tintim por tintim, sem pôr nem tirar. O único que posso acrescentar é que hoje cada árvore, cada pessoa da cidade, usufrui de um beijo como o que um dia foi meu, e isso - como já o disse e não me cansarei de o repetir - só foi possível graças à amizade de tantos e tantas, tão queridos e queridas, que ao tomarem conhecimento do beco sem saída em que tinha entrado, aceitaram colaborar, mandando um beijo igualzinho ao que eu recebera, ao endereço eletrônico de cada um dos habitantes da cidade. Um beijo amável e sincero, com lábios transmissores de ternura e amizade, úmidos de felicidade e vermelhos de alegria.

Hoje dá gosto ver os beijos reunidos numa das árvores contando-se uns aos outros histórias que os fazem rir até as lágrimas, mas nas quais nenhum deles realmente acredita.

A preferida, que é a que mais hilaridade provoca - talvez por ser a mais inverossímil - é aquela que conta o caso de um beijo que um dia escapou do destino que lhe haviam traçado e saiu por aí derretendo as neves que tudo cobriam e destruindo o frio que tudo matava.

É um verdadeiro prazer ouvir a tantos beijos rindo a boca solta de história tão sem sentido. "I-ma-giii-na", pode-se ouvir em todas as árvores de quase todas as esquinas: "um beijo derretendo a neeeeve, aniquilando o friiiio! Pooooxa!. quanta imaginação!... pois o frio e a neve não existem, não é?... nem nunca existiram, e o que é melhor, jamais existirão!!"...

E assim os beijos e os pássaros e as árvores e os jardins e as praças e os parques e os vizinhos viveram felizes por muitos e muitos anos, e sem dúvida continuarão a fazê-lo por muitos e muitos mais, enquanto que a minha história, que é tão verdadeira como a existência dos discos voadores e do homem invisível, aqui termina.

Só me resta fazer uma última oferta, que espero a aceitem sem receio: "mando um grande beijo para cada um de vocês, e os convido a fazer um número ilimitado de cópias e com elas inundar o amanhecer dos amigos e o jardim dos vizinhos,  transformando o inóspito espaço cibernético num aconchegante ponto de encontro; num retumbante sorriso sem palavras; numa inesgotável fonte de esperanças".



(14 de maio/2004)
CooJornal no 368


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm 
Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br