Ellen morreu uma morte tão prevista como imprevista. Uma morte sem
manchetes; nem sequer o consabido anúncio fúnebre pago pelos colegas
de turma como manda o protocolo em casos como esse, em que a morta tem
22 anos e alguns meses.
Ao receber a notícia de que Ellen não mais pagaria a mensalidade por
razões de força muito maior que todas as palavras, o Seguro de Saúde
da defunta suspira aliviado. Não mais biopsias nem consultas nem
partos normais ou prematuros. Não mais contas a pagar. Não mais Ellen.
Ellen morreu uma morte burocrática. Arquive-se então o seu
falecimento, que há outros candidatos esperando no sinal da Rio Branco
e Ouvidor. Futuros mortos que esperam a luz verde do destino para
deitar-se nas páginas do registro policial ou hospitalar e exalar o
ultimo suspiro por causa da bala perdida ou do motorista alcoolizado
ou do catéter esquecido bem dentro dele pelo médico que como sempre
estava mais interessado nas pernas da enfermeira do que na vida que
dele dependia, e tudo isso para glória e maior lucro do Seguro de
Saúde, que num gesto de respeito aos mortos mais ou menos inocentes,
mais ou menos matados, mais ou menos vítimas, mais ou menos
assassinados, decreta num memorando circunspecto que seus nomes sejam
inscritos e enterrados no panteão dos casos resolvidos.
Na janela desde a qual vigia a esquina da Rio Branco e Ouvidor, o
Seguro de Saúde vibra e faz as contas enquanto vislumbra olhando entre
as persianas uma enxurrada de clientes potenciais indo e vindo entre
pivetes cheios de giletes e motoristas carregados de pressa e
desrespeito, adivinhando que cada um em cada sinal vermelho reza ao
seu deus de estimação pedindo apenas que não chegue a hora de morrer
antes do tempo.
Atrás da janela do Seguro de Saúde um telefone toca, e uma voz
pretensamente sensual avisa a quem interessar possa aquilo que para
todos os interessados não é nenhuma novidade: que Ellen jamais
conhecerá o resultado da sua própria autópsia.
Digam vocês a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade: não
dá uma vontade danada de jogar uma pedra na janela do Seguro de
Saúde?...
(02 de abril/2004)
CooJornal
no 362