02/04/2004
Número - 362


 
Bruno Kampel



A MORTE ANÔNIMA

 

Ellen morreu uma morte tão prevista como imprevista. Uma morte sem manchetes; nem sequer o consabido anúncio fúnebre pago pelos colegas de turma como manda o protocolo em casos como esse, em que a morta tem 22 anos e alguns meses.

Ao receber a notícia de que Ellen não mais pagaria a mensalidade por razões de força muito maior que todas as palavras, o Seguro de Saúde da defunta suspira aliviado. Não mais biopsias nem consultas nem partos normais ou prematuros. Não mais contas a pagar. Não mais Ellen.

Ellen morreu uma morte burocrática. Arquive-se então o seu falecimento, que há outros candidatos esperando no sinal da Rio Branco e Ouvidor. Futuros mortos que esperam a luz verde do destino para deitar-se nas páginas do registro policial ou hospitalar e exalar o ultimo suspiro por causa da bala perdida ou do motorista alcoolizado ou do catéter esquecido bem dentro dele pelo médico que como sempre estava mais interessado nas pernas da enfermeira do que na vida que dele dependia, e tudo isso para glória e maior lucro do Seguro de Saúde, que num gesto de respeito aos mortos mais ou menos inocentes, mais ou menos matados, mais ou menos vítimas, mais ou menos assassinados, decreta num memorando circunspecto que seus nomes sejam inscritos e enterrados no panteão dos casos resolvidos.

Na janela desde a qual vigia a esquina da Rio Branco e Ouvidor, o Seguro de Saúde vibra e faz as contas enquanto vislumbra olhando entre as persianas uma enxurrada de clientes potenciais indo e vindo entre pivetes cheios de giletes e motoristas carregados de pressa e desrespeito, adivinhando que cada um em cada sinal vermelho reza ao seu deus de estimação pedindo apenas que não chegue a hora de morrer antes do tempo.

Atrás da janela do Seguro de Saúde um telefone toca, e uma voz pretensamente sensual avisa a quem interessar possa aquilo que para todos os interessados não é nenhuma novidade: que Ellen jamais conhecerá o resultado da sua própria autópsia.

Digam vocês a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade: não dá uma vontade danada de jogar uma pedra na janela do Seguro de Saúde?...


(02 de abril/2004)
CooJornal no 362


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
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Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br