Sem querer fui testemunha de um fato quase insólito que me deixou
muito pensativo. Para aqueles que não têm idéia do que estou falando,
passo a relatar o episódio para que fiquem ao par, mas não entrarei
nos detalhes para não cansá-los com minúcias de somenos importância.
Bem. Tudo começou com uma inocente troca de fotos numa das listas
literárias que visito regularmente. Ela (omitirei os nomes por razões
de netiquette) mandou uma .jpg do seu cachorro, e ele uma .gif
da sua tartaruga de estimação. Cupido, que estava à toa na vida, não
se fez esperar, e numa só flechada acertou nas duas moscas. Ela ficou
ciberneticamente apaixonada por ele, e ele não podia tirá-la da sua
cabeça.
Para cúmulo das coincidências – e como se tudo tivesse sido muito bem
ensaiado – tanto a dona do cachorro como o dono da tartaruga decidiram
sair nessa noite (cada um por seu lado, claro, já que nem sequer se
conheciam pessoalmente), para usufruir essa gloriosa noite de sábado
que exigia ser aproveitada até que o domingo dissesse chega!
Ele convidou à mulher do seu melhor amigo, que tinha ficado sozinha em
casa porque o seu marido – alegando que deveria comparecer a um
Simpósio no Acre – de fato estava esquiando com a amante em Chamonix,
yeela convidou a uma amiga solteirona para ir tomar uns drinks na
varanda do Iate Clube, já que o noivo a quem supunha numa pescaria com
os amigos do Banco, de fato estava passando o fim de semana com o
Geraldo, um garotão de primeira.
Bom, voltando aos atores principais do espetáculo, nem bem o cachorro
ficou sozinho, ou melhor dizendo, em companhia das poucas pulgas que
haviam driblado os efeitos do remédio que prometia morte rápida para
elas, decidiu-se, e sem mais delongas enviou um mail cheio de
metáforas envolventes e latidos melosos, apostando tudo numa carta,
convidando a tartaruguinha a dar uma volta, comer uns pasteizinhos de
camarão e bebericar uns chopinhos estupidamente gelados.
A tartaruga, que não deixava de pensar nos atributos masculinos que o
cachorro mostrava na foto que o seu dono havia recebido, aceitou
imediatamente, e em menos de meia hora ele tocou a campainha da casa
dela e ambos saíram em direção ao Bar do Beto – um boteco com alma -
para comer alguns quitutes gostosos e baratos, e para ver se apareciam
os batuqueiros de sempre para poder sacudir um pouco o esqueleto.
Vocês nem imaginam o que perderam!... Poucas vezes o trânsito desde a
virtualidade para a realidade produz frutos tão doces e em tão curto
período de tempo como no caso que nos ocupa.
Os minutos que dançavam no seu ritmo habitual foram bordando com
sorrisos e olhares prometedores a toalha do tempo que passava, e foi
assim que chegaram à sobremesa, justo quando os famosos batuqueiros da
Farme de Amoedo apareceram como se tivessem caído do céu, e o general
da banda, que fazia tempo entornava umas e outras no balcão,
cumprimentou a turma com um berro autoritário e molhado de cachaça, e
de imediato começou o ziriguidum.
O cachorro convidou à tartaruga e num abrir e fechar de olhos começou
o jogo de pernas dele e o rebolado dela, tudo ao som de um sambaço de
tirar o chapéu, e preciso dizer alguma coisa mais?... Foi um batuque
apoteótico de nunca acabar.
Entre um samba e outro; entre uma cervejinha e mais outra, o cachorro
chegou aos finalmente e apresentou as armas à tartaruga, e ela,
interessadissima no calibre do tresoitão dele, agradeceu como exige o
protocolo.
Depois de injetar um cafezinho requentado nas veias da noite que os
fitava com olhar triste como se estivesse despedindo-se sem palavras
antes que o amanhecer a jogasse a escantéio, o canino cavalheiro pagou
a nota, e abraçados como podiam sairam a caminhar pela calçada
circundante, atapetada com graciosas pedrinhas portuguesas que
certamente foram testemunhas oculares das noites de incontáveis
sábados que viram morrer entre as suas horas tantos amores recém
nascidos e ressuscitar tantos outros que haviam murchado antes do
tempo.
O casal assimétrico – empurrado por aquela sensação especial de
cumplicidade que domina a todos os que se sentem bem na companhia do
outro – sentou-se no meio fio da noite que findava, e entre olhares
sinceros e verdades definitivas chegaram conjuntamente juntos a duas
conclusões fundamentais: a primeira, que não encontrariam um “modus
operandi” que lhes permitisse fechar a noite com chave de ouro, já que
a discrepância no tamanho de ambos impedia que se conhecessem
biblicamente como era de se esperar em situações como a atual.
Quando finalmente assumiram que entre eles apenas poderia frutificar a
Amizade, decidiram – e esta é a segunda e última conclusão – criar uma
lista na Internet e chamá-la Animalis-Cibernéticus, na qual falar-se-á
com completa liberdade sobre todos os temas que digam respeito à vida,
aos sonhos e esperanças dos irracionais, e aos princípios e valores
que devem reger a relação entre o ser humano e sua mascote, mas
principalmente, servindo como trampolim para que encontros como o que
eles estavam protagonizando fossem a regra e não uma belíssima
exceção.
Ele – como bom cachorro manhoso que era – tentou com argumentos sutis
que no regulamento constasse um artigo que proibisse a participação de
pulgas e carrapatos, mas ela – inteligente como todas as tartarugas de
pedigree – impôs a sua idéia de que a liberdade de expressão está por
cima de todas as coisas e de todas as coceiras.
Bom, pondo um ponto final ao encontro ele não teve mais remédio do que
levá-la de volta ao seu lar e depois ir embora para a sua própria
casa. Antes de despedir-se ficaram em que empenhariam todas as suas
forças intelectuais para que Animalis-Cibernéticus se transforme numa
ponte virtual entre os animais de boa vontade, e que todos os bichos,
fossem da raça ou da cor que fossem, pudessem sentir-se protegidos
dentro desse espaço virtual.
Depois, cada um já no aconchego do lar – ele com a sua dona que já
voltara do Iate Clube e dormia sonhando com o noivo que dormia com o
Geraldo, e ela escutando os ais e os quero mais da esposa do melhor
amigo do seu dono – dedicaram-se a plantar as bases sobre os quais
descansará uma nova concepção do entendimento entre cachorros e
tartarugas, entre gatos e ratos, entre pulgas e elefantes, entre
todos.
Podem comprovar que como disse ao começar este relato, fui testemunha
privilegiada do nascimento de um fórum cibernético no qual todos
poderão dizer aquilo que todos quiserem escutar. Não é algo
extraordinário?... Merece ou não merece um brinde?...
VIVA ANIMALIS CIBERNÉTICUS!... A LISTA QUE LATE MAS NÃO MORDE.
Bom, prometo que se chego a receber o endereço eletrônico dessa lista
o publicarei para que possam passá-lo aos seus bichinhos de estimação.
Já posso até imaginar quando começarem a trocar entre eles as fotos
dos seus donos...
(27 de fevereiro/2004)
CooJornal
no 357