Sabendo que ela viria, escolhi qual seria o evento para melhor
recebê-la.
Carnaval, anunciava a folhinha. Pois que seja Carnaval, pensei. E com
o ritmo da noite que se aproximava já correndo-me nas veias da
impaciência iniciei os preparativos.
Contratei 6 imponentes nigerianos para que batessem o tambor, o
tamborim e o reco-reco. Tranquei no armário da garagem todos os
fantasmas que habitualmente circulam livremente pela sala da minha
memória. Despachei a minha espanhola para Andaluzia sem lhe dar mais
explicação do que uma vaga promessa de um futuro melhor. Corri os
móveis para aumentar o espaço. Troquei os lençóis, escolhendo uns de
cetim negro comprados em Paris numa dessas noites em que o dolce
farniente levou-me até a Galerie Lafayette.
Veuve Clicquot esfriando, caviar Beluga esperando pacientemente a sua
hora de ser degustado. E enquanto arrumava os últimos detalhes, o
Chivas descia suavemente, encontrando terreno propício para alimentar
esperanças.
E assim tão esperada ela chegou, inaugurando o desfile da única Escola
convidada para o evento que instaurava oficialmente o verdadeiro
carnaval nos meus salões mais íntimos, transformados em lupanar digno
de príncipes e sultões.
Os batuqueiros, como adivinhando que a hora era essa, começaram o
repique, ao som do qual, bamboleando sinuosamente, ela adentrou,
fantasiada de convite irrecusável, vestindo a mais ensolarada das
epidermes, oferecendo ao único espectador a certeza de uma noite
inesquecível.
No alto da carroça, recoberta com o suor que ela mesma fabricara,
balançando o seu desejo ao som do batuque, mexia nas minhas cordas
mais sensíveis.
E sem saber como, deixei o camarote e pulei para a avenida imaginária,
subindo até o púlpito desde o qual ela rezava seu cântico erótico, e
juntei-me à coreografia, balançando-me no seu compasso, apoiando-me no
seu ritmo, agarrando-me no seu suor.
E assim continuava o desfile, apoteótico, transmitido em cadeia para
todos os meus poros, para cada um dos meus sentidos.
Por isso custou-me escutar o silêncio que tomara conta do espaço, até
que olhando para o lugar onde os imponentes nigerianos deviam estar
cumprindo a missão para a qual haviam sido contratados, vi que eles
tinham abandonado os tambores, tamborins e reco-recos, e hipnotizados,
tinham os olhos postos nela, tocando-a de longe, acariciando-a
lascivamente com os olhos, roubando-me a primazia e o privilégio.
Sem pensar duas vezes expulsei a orquestra, e assim ficamos os dois,
molhados de expectativa, pendentes do que sabíamos seria o passo
decisivo.
Ajudei-a a descer, e cantarolando um samba nos agarramos, e o beijo
pareceu uma ordem peremptória que nos empurrou pela passarela
iluminada até o altar de cetim que desde cedo nos esperava.
Masoquistas, adiamos o encontro molhando o desejo no champanhe,
enchendo nossas bocas com caviar, conhecendo-nos, averiguando-nos.
A pesquisa, que começou prudente, adquiriu proporções de terremoto,
pondo à prova a nossa capacidade de conjugar esforços para encontrar
um resultado equivalente.
Sim, foi delirante. O beijo no lugar esperado, a carícia na hora
certa, a música de fundo composta de ais profundos, palavras sem nexo,
e o sexo, explícito e profundo, imperando soberano.
E assim fomos, ora trotando, ora galopando, ora descansando, e outra
vez o trote e o galope e o descanso, e outra vez, e tantas, que
parecia estarmos num paraíso feito de caviar e suor, de seda e
champanhe.
Quando o amanhecer bateu na janela do quarto, ela, já despida dos
trajes nupciais com que a luxúria a vestira, concedeu-me a última
valsa, e dançando a lembrança da noite que passara, esfumamo-nos no
despertar da realidade.
(20 de fevereiro/2004)
CooJornal
no 356