Quem se atrever a negar que o desejo e a lascívia pairam vitalícios
sobre nós como a fome sobrevoa dia e noite o estômago vazio, e que o
fracasso nada mais é do que um pouso de emergência, tampouco saberá
que os minutos engatinham ladeira acima qual tartarugas tetraplégicas
enquanto os anos decolam nos seus fantásticos vôos supersônicos, e que
embarcar na tese do tempo que flui é como deixar-se arrastar pela
esperança que nos veste e que nos despe, que nos faz e nos destrói.
Quem se atrever a negar que a borboleta é uma águia guerreira, e que o pardal
é filho das suas
próprias circunstâncias, e que o perdão é uma vacina que injeta nas nossas
veias o direito de recomeçar de zero, tampouco saberá que viver é nadar
contracorrente enquanto se caminha de joelhos com os olhos fechados sem sair
do lugar, e que para pensar sem medo de escorregar convém apertar o cinto
antes de começar essa viagem para dentro de nós mesmos, e que para ganhar ou
perder é imperativo arriscar-nos em vôos acrobáticos, ainda que terminemos
espatifados na beira de nós mesmos, lá bem no fundo das perguntas sem
resposta, sobre os lençóis do leito nupcial do desatino.
Quem se atrever a negar que a vida é um vôo cego sobre a pele de galinha de um
instante, tampouco saberá que o tempo é uma enciclopédia que se escreve sem
palavras; que o orgasmo é um tremor que começa na bainha da nossa libido e
termina num sincopado grito de alegria; que a felicidade é uma hecatombe
inacabada, um terremoto de reflexos carregados de veemência que expelem pelos
canais competentes seus humores sagrados enquanto jogam seus jogos candentes
com cartas marcadas molhadas de vida.
[O resto, todo o resto – não duvidem - é pura Literatura. Só a Vida vivida é a
versão original de si mesma].
(06 de fevereiro/2004)
CooJornal
no 354