30/01/2004
Número - 353


 
Bruno Kampel



HTML: O HOMEM CIBERNÉTICO

Não é lá muito difícil "adivinhar" o futuro imediato.

A diferença mais determinante será que o computador finalmente deixará de ser um apêndice secundário ainda que necessário do ser humano, pois o Pitecantropus mais ou menos Erectus que nos habita; sim, o tal do homo cada vez menos sapiens em tudo aquilo que se refere ao lado intelectual e emocional da sua própria pessoa, terá renunciado sem resistência a esse papel secundário de amo e senhor de si mesmo que protagoniza atualmente, e passará a ocupar o lugar que o progresso lhe conferirá.

Nesse novo cenário que o futuro já está construindo enquanto digitalizamos nossas emoções e imprimimos nossos vazios e prazeres, deixará para sempre de usar o computador como um mero instrumento auxiliar de conhecimento, transformando-se numa simples extensão do mesmo, e o PC, em agradecimento pela rendição sem luta do ser de carne e osso, eliminará com um simples Delete/Apagar todas as preocupações, todas as perguntas sem resposta, todos os poréns da vida do seu novo dependente, e este, num simples abrir e fechar de programa aprenderá o que deve dizer, quando deve fazê-lo, quem é que manda, por quê deve obedecer, e claro, não poderia faltar, quando deve memorizar o livro, o conto, o poema, o discurso ou a consigna virtual que o instrutor cibernético lhe indicará.

Depois de efetuar o download do livro, do conto, do poema, do discurso ou da consigna virtual, receberá um e-mail codificado com o comentário sobre o significado de dito livro, conto, poema, discurso ou consigna, e um perfil em formato .txt de cada um dos personagens ou pontos importantes, e como corolário uma imagem .gif que resumirá aquilo que deverá lembrar sobre o tema, e finalmente o computador se desconectará do usuário até que o necessite novamente para instruí-lo nas artes da maravilhosa vida cibernética.

Os poucos que nos oponhamos a essa tiranía megabáitica (sim, desde já me incluo) seremos internados em centros de reeducação financiados com o 0,7% dos lucros da Microsoft, e os que apesar disso não possamos adaptar-nos ao novo modus vivendi, seremos enviados a Guantânamo ou à Disneyworld para que lá cumpramos a condena de viver enjaulados dentro de minúsculos arquivos .zip que impedirão todo e qualquer movimento devido à compactação que teremos sofrido, ainda que como sempre ocorreu ao longo da longa História, poderão impedir que nos mexamos, que nos olhemos, que nos falemos, que nos toquemos, que atuemos, que contestemos, que discutamos, que gritemos, que defendamos e que acusemos, mas não há nem haverá programa internáutico nem futuro cibernético nem password indecifrável que impeça aos poucos que por princípio jamais se ajoelham submissos, o pleno exercício do direito de pensar, e os construtores da futura vida eletrônica sabem muito bem sabido que a liberdade de pensamento é um vírus letal e indestrutível que mais cedo ou mais tarde encontrará a fórmula mágica que desative para sempre o programa pirata que manipulou e manipula o código genético da humanidade e usurpou e usurpa o comando, transformando seres humanos cheios de maravilhosas falhas de fabricação, em máquinas cuja perfeição é a melhor prova da sua completa inutilidade.

Quando isso acontecer – e que nenhum disco duro por mais gigas que use como armadilhas, ou qualquer chip de destruição massiva que viva à espreita, ou os gênios de laboratório que ultimam os preparativos para transformar mentes em arquivos e livre arbítrio em doença mortal pense que poderá evitá-lo, voltaremos todos a ser felizes para sempre com as nossas dores verdadeiras, com os nossos fracassos reais, com as nossas mentiras fatais, com as nossas verdades parciais, com a nossa insegurança, com a nossa esperança.

<Send>Resistiremos!</Sent>

 

(30 de janeiro/2004)
CooJornal no 353

Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm 
Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br