16/10/2003
Número - 336


 
Bruno Kampel



MANIFESTO DAS OVELHAS NEGRAS

Nota do autor:
Esta é a versão completa do texto publicado parcialmente nesta coluna há alguns meses.



Pesando e medindo atos e fatos da vida, e comparando alguns projetos com seus resultados, é fácil concluir que geralmente os desafinados somos nós e não a vida ou os projetos ou seus resultados; apenas nós, os poucos que obstinadamente insistimos em pedir pêras à macieira; os raros que teimosamente não renunciamos a procurar formigueiros no asfalto; os extravagantes que preferimos ser surdos num discurso e mudos num concerto, porque o que realmente procuramos são as pequenas perguntas que desafiam, e não as grandiloqüentes respostas que satisfazem.

Somos o que convencionou-se definir como verdadeiras e abomináveis ovelhas negras, sem pôr nem tirar, e não temos problemas de confessar sem rubor que isso honra-nos muito, pois por temperamento preferimos cultivar idéias no jardim dos fundos da nossa existência a ter que invejar as roseiras que nos olham desde o jardim do nosso vizinho; optamos sempre por plantar uma árvore na esquina da nossa própria verdade antes que podar as galhos que dão sombra à estrada pela qual transita a verdade de nossos adversários; escolhemos sempre cuidar a grama que cresce entre as estrofes do nosso ideário ou nas entrelinhas dos nossos fracassos, a ter que apará-la para satisfazer o gosto alheio; e principalmente, escolhemos lavar e passar as nossas velhas e surradas utopias - essas que jazem no fundo da gaveta das boas intenções - a ter que abaixar os braços e aceitar as ordens peremptórias e quase sempre sem sentido dessa déspota chamada Realidade; e sabe-se lá mais o quê, ou vai ver que sim sabe-se lá muito bem o quê, mas o que verdadeiramente importa é que tratemos todos de ser mais felizes do que merecemos e muito menos infelizes do que mereçamos, e nada mais.

É portanto imperativo desejar que o tempo nos ensine a sintonizar com maior precisão a freqüência na qual se transmitem os interesses do próximo, e quem sabe, como prêmio, esse mesmo tempo faça que o próximo fique um pouquinho mais tolerante toda vez que esbarrar numa idéia desagradável que proponhamos, num pensamento antagônico que manifestemos, ou numa ideologia diferente que defendamos, já que todos estamos à procura de pontes e não de precipícios; de temas que obriguem a pensar e não de distrações que convidem a esquecer; de batalhas dialéticas que forjem nosso caráter, e não de simples vitórias que o deformem.

Em razão do acima exposto, propomos:

1.- Que o cinza chumbo seja definitivamente expulso do arco-íris, e que o desejo de vingança peça concordata, e que o abuso de direito seja encarcerado sem fiança.

2.- Que se degrade o Ódio à categoria de Antagonismo, perdendo assim os benefícios que o grau anterior lhe concedia, como seja matar sem pedir licença ou pintar com sangue as palavras ou vestir de luto os discursos.

3.- Que os dedos não mais sejam usados para apertar gatilhos, nem as mãos para cravar punhais, nem os olhos para matar olhando, nem a boca para cuspir mentiras, nem o verbo para semear discórdia, nem o ouro para comprar consciências.

4.- Que se proíba terminantemente morrer pela Pátria e se convide em todos os canais y em todas as revistas e jornais a fazer exatamente o contrário: viver por ela.

5.- Que o discorrer das horas, dos dias e semanas, dos meses e dos anos, gere instantes de prazer, minutos de alegria, horas aproveitáveis, dias frutíferos, semanas produtivas, meses gratificantes, anos plenos de esperança.

6.- Que se suspenda definitivamente o patrocínio comercial de todas as guerras por mais ou menos santas que forem, e que se puna severamente a publicidade dos fabricantes da ignomínia.

7.- Que se permita o retorno da Inocência Perdida desde o injusto desterro ao qual fora condenada sem processo, e seja convidada a ocupar o lugar de honra que merece.

8.- Que nunca mais floresçam mortos anônimos nos jardins das ditaduras, e que jamais a desvergonha volte a semear com vítimas inocentes dos danos colaterais o registro sensitivo dos povos.

9.- Que as bombas inteligentes sejam aposentadas e um manto real de teias de aranha lhes sirva de mortalha nos escuros porões dos museus, e que os líderes bem menos inteligentes do que as bombas que fabricaram os arquitetos da morte murchem no viveiro do tempo sem pena nem glória, e seus nomes desapareçam para sempre das páginas da História que eles ajudaram a manchar com sangue inocente e lágrimas de dor.

10.- Que os punhos fechados se abram em mãos estendidas ao próximo, e que a paz rompa os grilhões, e que a verdade tenha finalmente o direito de dizer a última palavra.
 

(16 de outubro/2003)
CooJornal no 336

Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
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Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br