21/08/2003
Número - 328


 
Bruno Kampel



CÍRCULO VICIOSO
 

Amigos,


Mando um par de mensagens que escrevi e publiquei, que refletem o que penso sobre a barbárie do Oriente Médio. Espero ter sido suficientemente claro nelas para que todos entendam que uma criança judia não vale nem mais nem menos que uma criança palestina. Que um ato de lesa humanidade como o de explodir um ônibus cheio de inocentes não difere em brutalidade e insensatez do ato de bombardear população civil inocente com o pretexto de matar a um líder terrorista. Principalmente, que não haverá paz até que Israel abandone os territórios ocupados (a causa-mater de tanta morte de inocentes).

Já leremos hoje nos jornais o quanto o atual governo de Israel se parece aos que combate. Suspenderão as negociações (que é o que os fundamentalistas de ambos bandos querem). Suspenderão a retirada parcial prometida (que é o que os fundamentalistas de ambos bandos querem). A represália será brutal (como os fundamentalistas de ambos bandos querem). A paz ficará um pouco mais longe, porque o governo de Israel uma vez mais deixará que os fanáticos de ambos bandos tenham a última palavra.


Conjugando o ódio

Eu mato / tu morres / ele também / nós festejamos / vós sofreis  / eles se vingam.
E então, para não ser menos...
Eu morro / tu matas / ele também / nós sofremos / vós festejais / eles se vingam.
E assim até a última bala. / Ou até a última vida.


Hora: 14:00 GMT

Um jovem palestino de 23 anos, atuando em nome dos sagrados direitos de seu povo e da misericórdia ilimitada que transpira de cada versículo do Corão, aperta o botão e se faz explodir dentro de um ônibus. Morrem - além dele - 12 inocentes, acusados e condenados sem direito de defesa pelo crime de serem judeus.

Enquanto os especialistas procuram e recolhem entre as ferragens retorcidas do que fora um ônibus os pedacinhos das quase crianças que nunca serão adultas, e dos adultos que não chegarão à velhice, e dos velhos que não morrerão na cama, não poucos paladinos da liberdade e dos direitos humanos olham para outro lado.


Hora: 20:00 GMT

Um jovem israelense de 23 anos, atuando em nome dos sagrados direitos de seu povo e da misericórdia que transpira de cada salmo da Torá, aperta o gatilho do disparador de foguetes do seu F-16. Morrem tanto o objetivo do disparo como seus 4 filhos, que nunca serão adultos, e alguns vizinhos do prédio, que não chegarão a velhos, e os que estavam na casa do lado, que sim morreram na cama, vítimas do efeito letal do vírus transmissor dessa terrível doença chamada danos colaterais.

Enquanto os enfermeiros da Meia Lua Crescente recolhem entre os destroços a carne moída de tantos inocentes, não poucos paladinos da liberdade e dos direitos humanos olham para outro lado.


Hora: Agora

Esses são dois dos piores e mais destrutivos exemplos do que as meias verdades são capazes de produzir, porque elas não passam de ser grandes e desalmadas mentiras.

Enquanto os atores do drama continuarem a olhar apenas o meio copo cheio com que os inimigos saciam a sede de sangue, esquecendo do outro meio copo no qual mata a sede a sua própia intolerância, o círculo vicioso do matar para vingar continuará, e os coveiros seguirão
trabalhando horas extras.


FRENTE À AMEAÇA TERRORISTA

Redes terroristas não se combatem apenas com bombas, porque dessa forma ao contrário de desaparecer elas crescem e se multiplicam.

Basta com abrir um livro de História para comprovar que todos os movimentos terroristas que tinham uma raiz nacional ou religiosa o IRA irlandês é o melhor exemplo) nasceram por geração espontânea e multiplicaram-se na razão direta da adversidade do terreno que pisavam. E convenhamos que se fosse possível bombardear com sucesso o terrorismo, ele não mais existiria, porque bombas não faltam, nem muito menos a vontade de usá-las.

Quanto ao germe do terrorismo islâmico - que é o que mais nos aflige - ele tem diversas origens, e não apenas o mal uso do Corão que fazem alguns manipuladores de consciências.

Refiro-me aos reis, sheiks, emires, príncipes, sultões, e suas respectivas cortes nababescas, que privatizaram as riquezas do subsolo dos seus reinos ou paises, dos seus emirados, sultanatos ou principados, e a renda provinda da venda dessas riquezas minerais não renováveis (centenas de bilhões de dólares nos últimos anos) foi e continua indo parar muito além das fronteiras dos países geradores, e a anos-luz de distância do desejável usufruto dessa riqueza l cidadãos, estando depositada principalmente nos bancos americanos (80%) e na Europa (20%).

Esses governantes, sejam eles inescrupulosos sheiks ou emires, príncipes, reis ou sultões, são os grandes inimigos do Islam em particular e do gênero humano em geral, e os principais geradores e financiadores do terrorismo maldito que mantém atemorizado a quase todo o mundo.

Se esses capitais desviados para as arcas dos líderes corruptos tivessem sido investidos nos países de origem, o mundo seria certamente muito mais justo e ameno. Mas não, já que as potências ocidentais, usando métodos conhecidos e provados ao longo do século XX, forçavam e forçam a esses governantes a gastarem a maior parte dos orçamentos nacionais em armas por eles fabricadas, e o pouco ou muito que resta é também investido lá ou nos paraísos fiscais, em bens registrados no nome dos sátrapas de turno ou de seus prepostos.

É decisivo então, para iniciar o extermínio da lacra do terror, usar não apenas manu militari, porque ela, quando aplicada sem o necessário complemento político, adiciona sal à ferida, mas atacar a fonte do mal, o foco do contágio, as origens dessa doença que mina a saúde de tantos povos, de tantos países e reinos, de não menos emiratos, principados e sultanatos, e cujos reflexos se fazem sentir nos ônibus cheios de inocentes que suicidas palestinos fazem explodir em Israel, ou nas torres gêmeas que desmoronam em Manhattan com milhares de inocentes nas suas entranhas, ou na sinagoga que arde em Paris.

Por outra parte, proibido esquecer o fato de que se as reivindicações dos grupos terroristas atuantes em qualquer época ou região forem analisadas com a frialdade necessária, constatar-se-á que no fundo, bem lá no fundo da violência assassina que usam, subjaz um motivo real e compreensível que faz com que alguns daqueles que caíram em cativeiro nas mãos desses grupos - em qualquer época ou região - tenham sofrido o que hoje se denomina "a Síndrome de Estocolmo", que nada mais é do que a compreensão por parte do seqüestrado de que senão todas, pelo menos as mais importantes reivindicações desses grupos terroristas são basicamente justas, e o que produz a rejeição absoluta é o modus operandi deles, ou seja, o inadmissível e intolerável uso da violência indiscriminada contra a população civil.

Reconhecer que o fundo da questão é discutível e negociável é o primeiro passo em direção de uma solução, e não uma carte blanche para o uso da violência, seja a praticada por grupos terroristas, seja a oriunda de decisões de governos estáveis e supostamente democráticos, mas muito pelo contrário, um convite à deposição das armas, servindo tal gesto como detonante de um processo que, se levado a sério por todos os envolvidos, fatalmente conduzirá a uma compreensão recíproca das necessidades de cada uma das partes, ponto de partida de um caminho que culmine num grande acordo no qual os poderosos renunciem a uma fatia do grande bolo, e os menos favorecidos saibam usar essa fatia em benefício de todos.

Theodor Herzl, Ben Gurion, Golda Meir, Jabotinsky, sonharam com um Estado para os judeus. Depois, arregaçaram as mangas e o transformaram em realidade.

O fim do terror e das causas que o geram é hoje também o sonho de muitos. Pois então, mãos à obra!


ARIEL SHARON E OS QUARENTA LADRÕES

Um dos problemas mais difíceis de superar para situar o conflito Israel/Palestina no seu contexto, é a facilidade e assiduidade com que se abusa do erro de misturar o Estado de Israel com o governo de Israel. Uns o fazem por desconhecimento, e outros - a direita judaica em particular e os anti-semitas em geral, ainda que por razões antagônicas - para confundir à opinião pública.

O Estado de Israel, graças a d''s, e ainda que isto a muitos lhes pese, é plural e democrático, com enormes massas de cidadãos que se opõem ao governo, e, por exemplo, aos assassinatos seletivos (hoje melhor seria chamá-los de assassinatos coletivos), à ocupação dos territórios, à demolição das casas dos parentes dos terroristas, etc.

Em Israel acontecem passeatas contra a ocupação e manifestações multitudinárias contra o governo, organizadas pelo lado humanista-progressista da sociedade (os herdeiros de Ben Gurion, Golda Meir, Rabin ) e pelo outro lado do espectro político-social, estão os que apoiam o governo. Uns por convicção ideológica (a extrema-direita, que se inspira nos grupos terroristas judeus anteriores à criação do Estado, como Etzel e Stern, e os fundamentalistas religiosos de todas as cores), outros por oportunismo (os assentados nos territórios, que recebem casa de graça enquanto os pobres de Israel se favelizam, e que vivem às custas do dinheiro que a população trabalhadora paga como impostos, etc.), e a grande maioria silenciosa, essa que está verdadeiramente assustada e apavorada pelo grau de violência a que se chegou, que é elevadíssimo, e cujo eco é amplificado artificial e propositalmente pelos órgãos de informação manipulados por aqueles que sonham com a Grande e impossível Israel, pois a direita radical precisa do medo do povo para continuar ocupando a casa dos outros, ou matando indiscriminadamente, (igualzinho que os terroristas do outro lado), etc.

A realidade de Israel - portanto - não pode ser analisada a partir de frases amáveis ou discursos grandiloqüentes deste ou daquele judeu proeminente ou palestino de igual hierarquia, porque assim incorre-se no erro infantil de tentar cobrir o sol com a peneira, já que a verdadeira geradora de toda a violência atual é a ocupação ilegal dos territórios.

O que começou como produto de uma guerra, e que depois Moshé Dayan explicava com o argumento de que todos os territórios serviriam de moeda de troca para a assinatura de um tratado de paz, passou paulatinamente a transformar-se numa bomba de tempo que hoje explode matando inocentes e, pior ainda, ferindo de morte a imagem de Medinat Israel.

Ariel Sharon e outros, quando detentores do poder (Beguin foi o grande promotor da ocupação), exauriram as reservas econômicas do Estado na construção de assentamentos ilegais, e que alguns deles, com o correr do tempo, transformaram-se em pequenas cidades, e o preço o está pagando hoje a população de Israel: 20% dos judeus passam fome. Milhares moram nas ruas (um "assentamento" dos judeus sem teto cresce dia-a-dia no exclusivo e elitista kikar hamediná, onde se encontra o Consulado do Brasil), e, como tiro de misericórdia, vale mencionar que um Batalhão do exército (Gdud 50, se não me falha a memória), um dos mais cheios de condecorações (dele participaram Dan Shomron, Raful, e outros desse calibre) escreveu uma carta aberta aos jornais dizendo que não podem defender o Estado quando as suas famílias estão morrendo de fome.

Depois, como segundo passo em direção ao precipício, fazia-se necessário que o exército lá estivesse presente para proteger aos assentados, pois a realidade era e é que estavam e continuam usando a terra dos outros, já seja a ocupada manu militari, ou a roubada ou comprada a ponta de pistola. E assim criou-se o círculo vicioso no qual giramos até os dias de hoje.

E na medida em que os anos passavam a corda foi-se apertando no pescoço de Israel até o nefasto dia em que Sharon - um verdadeiro elefante numa loja de cristais - derrubou o castelo de cartas que tanto custara levantar a Rabin.

Sim, num "golpe de mestre", numa visita planejada para fechar as portas a qualquer acordo, apareceu com mais de mil seguranças na esplanada das mesquitas. Depois disso, começou o inferno no qual ardem hoje os princípios e os valores em cujo nome fundou-se o Estado de Israel.

Hoje podemos dizer sem medo de errar que, se bem não foi o único motivo, a visita dele à esplanada das mesquitas foi o atestado definitivo que provava que Sharon não é (como nunca o foi) um homem de paz, mas muito pelo contrário.

E o que dizer das promessas que o transformaram em primeiro-ministro?... Chegou oferecendo segurança e paz, e encheu, enche e continuará a encher os cemitérios judeus de mortos inocentes, da mesma forma que Arafat, já seja pela sua incapacidade de controlar aos grupos terroristas (jamais a teve, e todos sabíamos disso), já seja por ação ou omissão, é o responsável pela morte de tantos palestinos inocentes (cinco vezes mais do que os israelenses).

Enfim, o assunto não é simples nem pode nem deve ser reduzido a uma descafeinada troca de opiniões, e principalmente, deverá ficar claro para todos nós que quem defende a alternativa de paz pode fazê-lo desde qualquer ponto do mundo, mas quem faz apologia da guerra sem quartel nem limites éticos contra os terroristas em particular, contra o povo palestino e o povo árabe em geral, que vá lá e se aliste nas milícias armadas dos fundamentalistas judeus nos territórios. Garanto que o/a aceitam na hora. O que não pode ser é que alguém proponha carnificinas, bombardeios de populações inocentes, assassinatos seletivos e coletivos, e depois vá patinar no Barrashopping.


(21 de agosto/2003)
CooJornal no 328


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm 
Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br