02/08/2003
Número - 326

 
Bruno Kampel



LUTANDO CONTRA MOINHOS DE VENTO

Férias concluídas. Retorno portanto ao mundo dos mortos e feridos, dos danos colaterais, das mentiras oficiais, das falências e concordatas fraudulentas, dos suicídios providenciais, das contas a pagar e a receber, das promessas por cumprir, e apresento um texto que já tem barba e bigode, mas aproveitei o vôo desde São Petersburgo a Estocolmo para reformar por aqui, recauchutar acolá, reformular por ali, e quem o lê agora nem acredita que ele já foi um descartável e-mail que um dia de algum mês de algum ano não muito longínquo no tempo, mandei a alguém quando esse alguém aprestava-se a remeter para alguma revista de distribuição nacional um tratado filosófico e filológico sobre o anti-semitismo, contestando a burda e canalhesca argumentação de um tal Bourdoukan, quem afirmava com a maior cara-de-pau que os judeus foram os grandes aliados de Hitler.
Da carta original fica pouco ou nada, mas o essencial aí está: ou "vendemos" o combate ao anti-semitismo como se fosse um belo carro esporte ou uma maravilhosa semana em Mikonos, Ibiza ou Angra dos Reis, ou caso contrário, Inês é morta.

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LUTANDO CONTRA MOINHOS DE VENTO

(Ao ataque que são gigantes, Sancho Pança!... Não, dom Quixote, não são gigantes. São moinhos de vento!)


Infelizmente, o combate ao anti-semitismo nos meios de comunicação fica geralmente nas mãos e na linguagem de professores universitários, catedráticos, bispos, rabinos, políticos, filósofos e similares.

Seus argumentos - quase sempre profundos e muito bem documentados - não ficam a dever nada a qualquer tese a ser defendida perante uma junta de Sábios, e com isso - paradoxalmente - se transformam em difíceis e chatos de serem lidos pela maioria esmagadora dos compradores de jornais e revistas, os quais, como é fácil de adivinhar, são majoritariamente pouco instruídos no assunto, como a maioria dos alunos da maioria das faculdades, e como a maioria dos que preenchem cargos públicos dos primeiros escalões, e como a maioria dos jornalistas, e como a maioria da maioria.

Se o combate ao anti-semitismo continuar nas mãos e nos discursos de candidatos ao Nobel de Filosofia ou de História ou de Religião, apenas um pequeno grupo de privilegiados entenderá, ou se interessará, pelo conteúdo da matéria publicada, pois a soma de citações bibliográficas e referências históricas transpira sempre demasiada pomposidade erudita, e bom seria se o tema pudesse ser apresentado já decodificado e traduzido à linguagem que a generalidade do povo entende, aceita e digere com facilidade.

Muito poucas pessoas estão realmente interessados nas raízes históricas do fenômeno do anti-semitismo, mas muitas sim o estão nos efeitos que ele produz sobre um papel em branco como é a cabeça da maioria dos leitores no que diz respeito a esse tema específico.

O anti-semitismo existe e perdura não pela seriedade do seu ideário, mas pela facilidade com que falsas acusações adquirem perfil de realidades sagradas.

Pessoas que acreditam piamente em viagens ao passado e ao futuro; em invasões de seres de outro planeta; que esperam ansiosos a hora da novela das oito; que acendem uma vela a deus e outra ao diabo, e, principalmente, que carregam na sua bagagem genética um anti-semitismo patológico, inculcado ao longo de vinte séculos de velha e caduca catequese cristã, não estão interessadas na verdade dos fatos, mas desejam ouvir uma versão da realidade que os isente da acusação de que eles são os verdugos, e que garanta que eles são as pobres vítimas, e infelizmente, o judeu de nariz comprida, chapéu e capota preta, tem servido às mil maravilhas para preencher o papel de pai de todos os males havidos e por haver.

Esse tem sido um dos muitos, muitíssimos erros em que habitualmente incorrem e nos quais reincidem os chamados formadores de opinião. Uma elite intelectual dirigindo-se a uma massa semi-alfabetizada no que ao ódio aos judeus se refere (e não há nesse semi-analfabetismo qualquer demérito ou desdouro), discursando como se o ouvinte entendesse qualquer coisa além da certeza de que há exploradores e explorados, manipuladores e manipulados, ladrões que roubam muito e ficam impunes, e famintos que roubam um pão e são severamente castigados.

Por tudo isso é que o assunto não pede profundidade na análise nem riqueza no vocabulário, já que nenhum artigo contra o anti-semitismo ou contra os anti-semitas em particular conseguirá desfazer por arte de magia os efeitos já acumulados e assimilados desse anti-semitismo visceral, porque qualquer manifestação anti-judaica não gera nenhuma reação que já não esteja na cabeça de muitos dos leitores.

O que sim - e se soubermos despir o nosso discurso dos floreios que usamos cada vez que dizemos a nossa verdade - temos chances de que ele seja ouvido ou lido até o fim. Mas não nos enganemos: a predisposição anti-semita ficará onde ela está, e cada vez que a TV mostrar que algumas crianças palestinas morreram pelas balas dos soldados de Israel, o efeito aflorará, e cada vez que um suicida palestino explodir 20 crianças judias na porta de um colégio, o efeito contrário surgirá, quase que justificando o evento como se de um ato de pura defesa se tratasse.

Esse é um filme que já assistimos demasiadas vezes, e deveríamos saber que a palavra é um excelente veículo transmissor do ódio, mas que enfrenta sérias dificuldades na hora de transmitir tolerância.

A mentira é uma excelente amazona que cavalga com facilidade sobre o terreno da opinião pública, enquanto que a verdade cái do cavalo a cada fato que a contesta ou desafia.

Portanto, detalhar exaustivamente dados históricos e mencionar referências bibliográficas transforma qualquer artigo que tenha como objetivo combater o anti-semitismo num hieróglifo similar a certas entrevistas que médicos dão pela TV.

- Doutor: por que é que me dói a cabeça?....
- Minha filha. Como bem sabe, a conjunção de fatores sintomatológicos de diversa e antagônica procedência fazem que muitos de nós optemos por ...

Ou seja. Depois de ouvir, a perguntona sai com mais dor de cabeça da que tinha antes de fazê-lo. A menos - é claro - que o locutor meta o bedelho e indague ao médico se ele poderia falar para seres humanos, a fim de que a audiência possa entender.

Creio que artigos completos, com citações, bibliografia, erudição, riqueza de definições, podem e devem ser escritos e enviados a destinatários escolhidos a dedo. Professores universitários, Cúria Metropolitana, Instituições de Direitos Humanos, Instituições judaicas, Associações palestinas, Supremo Tribunal, e até vir a ser incluídos como prova num processo penal contra o autor e o editor de qualquer texto/artigo/opinião/livro anti-semita, podendo inclusive ser traduzido para o inglês e outros idiomas e distribuído no exterior.

Mas no que à imprensa tupiniquim se refere, julgo que tem que ser usada a linguagem que os editores sempre recomendam para que o leitor leia até o fim: primeiro parágrafo contundente e insinuante, e o resto de fácil digestão. Palavras inteligíveis, frases curtas e claras.
Essa é pelo menos a minha opinião, que como todas as minhas opiniões, é filha natural da experiência e de pai desconhecido.




(02 de agosto/2003)
CooJornal no 326


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm 
Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br