26/07/2003
Número - 325


 
Bruno Kampel



FRAGRÂNCIAS DE ONTEM

Do que realmente gostava o Julinho era de brincar no jardim dos fundos de sua casa, e era isso o que ele estava fazendo naquela ensolarada manhã repleta de passarinhos, com o inconfundível aroma de jasmins inundando o bucólico cenário e as infaltáveis borboletas balançando-se nos galhos, quando ao deixar vagar o olhar sem rumo definido flagrou um enorme cacto do jardim do vizinho no exato momento em que pulava sobre a cerca de arame que separava os terrenos e em menos de um abrir e fechar de olhos abraçava-se a um dos trevos que viviam no seu jardim e começavam a beijar-se na boca.

Sem perder tempo foi até o formigueiro que funcionava na outra ponta do jardim para saber se os chefes das formigas - seus amigos Quinta Sinfonia e General da Banda - tinham visto o ocorrido, mas para seu pesar um cartaz avisava que o formigueiro estava fechado por causa das férias e que todas elas tinham viajado num charter da FormigAir até o Parque Municipal, ficando assim com a grande honra de ter sido a única testemunha ocular da história.

Julinho saiu correndo para contar a novidade à sua mãe, mas ela para variar não acreditou, dizendo o mesmo de sempre - que deixasse de sonhar acordado e outras coisas pelo estilo. Esperou impaciente a volta do pai do trabalho - quem como de hábito não chegou sozinho porque a escuridão da noite sempre o acompanhava - e contou-lhe o acontecido, mas o pai, igualzinho que a mãe, lhe disse que deixasse de ler tantas revistas infantis e livros de Júlio Verne e o Tesouro da Juventude, porque em caso contrário terminaria muito mal; ou completamente maluco, ou muito pior ainda, poeta ou escritor.

O melhor de toda essa confusão é que Julinho não precisou esperar muito para que a sua grande vingança acontecesse, o que de fato ocorreu numa outra manhã de um outro dia de um outro mês, ainda que no mesmo jardim e com os mesmos passarinhos como testemunhas silenciosas, todos deliciosamente embriagados pelo inconfundível perfume dos jasmins e pela beleza sobrenatural das borboletas - que enquanto dançavam felizes de galho em galho, olhavam de soslaio o panorama - quando no mesmo lugar em que antes acontecera o estranho noivado floresceu a verdade em toda a sua plenitude, porque senhoras e senhores, o trevo tinha dado à luz gêmeos, o que significava que tudo aquilo que Julinho tinha afirmado que vira era a mais absoluta verdade e não o produto da fantasia de uma criança candidata ao Pinel, ou pior ainda, a ser poeta ou escritor, como seus pais suspeitavam.

Sim. No gramado do jardim, bem encostada à cerca que separava os dois terrenos e colada à mamãe-trevo que estava iniciando-se na arte de trocar fraldas, encontrava-se a prova definitiva que o absolvia para sempre: um fofíssimo trevo cheio de espinhos e um pequeno e maravilhoso cacto de quatro folhas.

(Por essas e outras, sempre convém perguntar: o que é realmente a verdade, ein?... Vamos lá... que cada um conte a sua. O último paga a conta)


(26 de julho/2003)
CooJornal no 325


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
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Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br