Bruno Kampel
A PÁTRIA |
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Eu aprendi que minha pátria não é uma alegoria vestida com bandeiras e
enfeitada com cinzelados escudos.
Eu aprendi que minha pátria não é uma ideologia unilateral ou uma
filosofia integral ou uma tomografia visceral.
Eu aprendi que no mapa de minha pátria não cabem nem quartéis nem
traidores nem profetas.
Eu aprendi que minha pátria é algo mais do que um pano com um sol ou com
um punhado de estrelas em cujo nome morrem sempre os mais pobres, os mais
pretos, os mais índios, enquanto os outros engalanam com bandeiras de
todas as cores suas sacadas e seus ajardinados orgulhos.
Eu aprendi que em minha pátria há lugar para todos menos para os seus
verdugos, porque eles vivem pendentes do momento de poder agarrar as
rédeas, usando como argumento legitimador gritos ou demagogia, tiros ou
mentiras, fraude eleitoral ou cruentas quarteladas..
Eu aprendi que minha pátria não é um hino, mas que é tudo menos isso,
porque ao compasso de seus acordes se mata sem direito e se morre sem
motivo.
Eu aprendi que minha pátria nem sequer é o fiel reflexo de sua História,
porque o passado é um meia verdade - que é a pior de todas as mentiras -
que se conta segundo o pensar e o entender de quem o faça.
Eu aprendi que minha pátria é um pequeno grande espaço de liberdade
ocupado por gente como a gente, que somada resulta num país no qual cabe
quase tudo menos a prepotência dos que tentam defini-lo ao seu gosto e
apropriar-se do direito de decidir quem faz ou não parte dele.
Eu aprendi que a outra pátria que não é minha - cuja geografia é o produto
de lutas ao longo dos séculos - necessita soldados que requerem fuzis e um
tenente que os dirija, e esse tenente necessita superiores que o instruam
e uma carreira militar que o forme e um futuro que lhe ofereça como isca o
generalato na linha de chegada. E assim, essa pátria que não é minha tem
que parir um exército que precisa tanques e aviões e regimentos e heróis,
e então o suado dinheiro da gente não mais se destina a hospitais ou
escolas, a livros ou medicamentos, mas à compra de modernos aviões de
combate ou ao pagamento da fatura da fábrica norte-americana de canhões e
de bombas cada vez mais inteligentes.
Mas isso não é tudo. Eu aprendi que essa pátria que não é a minha
necessita uma estrutura burocrática para arrecadar impostos e impor
condutas, e assim é que surgem os governos famintos de poder e de glória,
e a conta do banquete é a gente que não come quem a paga.
Eu aprendi que minha pátria é meu idioma, minhas circunstâncias e meus
arredores, onde não cabe mais do que uma trinca de amigos verdadeiros,
trinta e tres parentes, cento setenta e oito conhecidos, um território de
oito ou nove quarteirões, alguns edifícios e paisagens, um par de árvores
com seus passarinhos, uma praça com seus pombos borboletas e jasmins, uma
infância cheia de mistérios e de risos e de amigos, um ontem cheio de
terraços e janelas habitados por grandes e pequenos vasos carregados de
gerânios, e também as impressões digitais que os dias e suas noites vão
imprimindo em nosso registro sensitivo.
Eu aprendi que minha pátria não tem pátria, porque é um tremor no fundo do
peito, um calar de emoção, um poema insonoro, um silêncio de felicidade,
um mutismo de alegria, um discurso sem palavras, um amor sem receita, um
ser parte de um todo que é parte de cada um.
Eu aprendi que na minha pátria não há heróis que mereçam estátuas, a não
ser os pobres explorados, as crianças sem futuro, os tantos sem sequer um
nome pelo qual serem chamados.
Eu aprendi que na minha pátria não cabe nenhuma pátria que se aprenda na
escola, nenhuma pátria que se ensine nos templos religiosos, nenhuma
pátria que se imparta nos quartéis, nenhuma pátria que se venda nos
quiosques, nenhuma pátria que cotize na Bolsa de Valores.
Eu aprendi que não importa onde se haja nascido, ou que se tenha vivido
esparramado por quatrocentos setenta continentes.
Eu aprendi que sou eu quem escolhe a minha pátria, e não a pátria quem me
escolhe.
Sim, eu aprendi a decidir hora por hora, dia-a-dia, sonho sobre sonho,
agonia após agonia, esperança atrás de esperança, lágrima com lágrima, que
minha pátria é a vida e seus atores, que minha pátria é a gente e suas
fronteiras. Que meus braços são a pátria de todos os meus abraços, e
minhas mãos a pátria de todas as minhas carícias.
Aprendi que sou ela, porque eu a inventei na minha vivência, porque eu a
escolhi na minha experiência, porque eu a aceitei nas minhas entranhas,
porque sim, porque sou o pai e o filho de minha pátria.
Essa é a pátria na qual sou o cacique e o índio, o general e o soldado, o
produto e o fator, um verdadeiro cidadão de primeira. Essa é a minha
pátria. Essa é a minha única pátria. A outra, não é nem pátria nem minha.
Pobre de nós se deixarmos que os fabricantes da desventura nos roubem o
direito à utopia e a sonhar e a viver a pátria que mais gostemos..
(12 de julho/2003)
CooJornal
no 323