12/07/2003
Número - 323


 
Bruno Kampel



A PÁTRIA

Eu aprendi que minha pátria não é uma alegoria vestida com bandeiras e enfeitada com cinzelados escudos.

Eu aprendi que minha pátria não é uma ideologia unilateral ou uma filosofia integral ou uma tomografia visceral.

Eu aprendi que no mapa de minha pátria não cabem nem quartéis nem traidores nem profetas.

Eu aprendi que minha pátria é algo mais do que um pano com um sol ou com um punhado de estrelas em cujo nome morrem sempre os mais pobres, os mais pretos, os mais índios, enquanto os outros engalanam com bandeiras de todas as cores suas sacadas e seus ajardinados orgulhos.

Eu aprendi que em minha pátria há lugar para todos menos para os seus verdugos, porque eles vivem pendentes do momento de poder agarrar as rédeas, usando como argumento legitimador gritos ou demagogia, tiros ou mentiras, fraude eleitoral ou cruentas quarteladas..

Eu aprendi que minha pátria não é um hino, mas que é tudo menos isso, porque ao compasso de seus acordes se mata sem direito e se morre sem motivo.

Eu aprendi que minha pátria nem sequer é o fiel reflexo de sua História, porque o passado é um meia verdade - que é a pior de todas as mentiras - que se conta segundo o pensar e o entender de quem o faça.

Eu aprendi que minha pátria é um pequeno grande espaço de liberdade ocupado por gente como a gente, que somada resulta num país no qual cabe quase tudo menos a prepotência dos que tentam defini-lo ao seu gosto e apropriar-se do direito de decidir quem faz ou não parte dele.

Eu aprendi que a outra pátria que não é minha - cuja geografia é o produto de lutas ao longo dos séculos - necessita soldados que requerem fuzis e um tenente que os dirija, e esse tenente necessita superiores que o instruam e uma carreira militar que o forme e um futuro que lhe ofereça como isca o generalato na linha de chegada. E assim, essa pátria que não é minha tem que parir um exército que precisa tanques e aviões e regimentos e heróis, e então o suado dinheiro da gente não mais se destina a hospitais ou escolas, a livros ou medicamentos, mas à compra de modernos aviões de combate ou ao pagamento da fatura da fábrica norte-americana de canhões e de bombas cada vez mais inteligentes.

Mas isso não é tudo. Eu aprendi que essa pátria que não é a minha necessita uma estrutura burocrática para arrecadar impostos e impor condutas, e assim é que surgem os governos famintos de poder e de glória, e a conta do banquete é a gente que não come quem a paga.

Eu aprendi que minha pátria é meu idioma, minhas circunstâncias e meus arredores, onde não cabe mais do que uma trinca de amigos verdadeiros, trinta e tres parentes, cento setenta e oito conhecidos, um território de oito ou nove quarteirões, alguns edifícios e paisagens, um par de árvores com seus passarinhos, uma praça com seus pombos borboletas e jasmins, uma infância cheia de mistérios e de risos e de amigos, um ontem cheio de terraços e janelas habitados por grandes e pequenos vasos carregados de gerânios, e também as impressões digitais que os dias e suas noites vão imprimindo em nosso registro sensitivo.

Eu aprendi que minha pátria não tem pátria, porque é um tremor no fundo do peito, um calar de emoção, um poema insonoro, um silêncio de felicidade, um mutismo de alegria, um discurso sem palavras, um amor sem receita, um ser parte de um todo que é parte de cada um.

Eu aprendi que na minha pátria não há heróis que mereçam estátuas, a não ser os pobres explorados, as crianças sem futuro, os tantos sem sequer um nome pelo qual serem chamados.

Eu aprendi que na minha pátria não cabe nenhuma pátria que se aprenda na escola, nenhuma pátria que se ensine nos templos religiosos, nenhuma pátria que se imparta nos quartéis, nenhuma pátria que se venda nos quiosques, nenhuma pátria que cotize na Bolsa de Valores.

Eu aprendi que não importa onde se haja nascido, ou que se tenha vivido esparramado por quatrocentos setenta continentes.

Eu aprendi que sou eu quem escolhe a minha pátria, e não a pátria quem me escolhe.

Sim, eu aprendi a decidir hora por hora, dia-a-dia, sonho sobre sonho, agonia após agonia, esperança atrás de esperança, lágrima com lágrima, que minha pátria é a vida e seus atores, que minha pátria é a gente e suas fronteiras. Que meus braços são a pátria de todos os meus abraços, e minhas mãos a pátria de todas as minhas carícias.

Aprendi que sou ela, porque eu a inventei na minha vivência, porque eu a escolhi na minha experiência, porque eu a aceitei nas minhas entranhas, porque sim, porque sou o pai e o filho de minha pátria.

Essa é a pátria na qual sou o cacique e o índio, o general e o soldado, o produto e o fator, um verdadeiro cidadão de primeira. Essa é a minha pátria. Essa é a minha única pátria. A outra, não é nem pátria nem minha.

Pobre de nós se deixarmos que os fabricantes da desventura nos roubem o direito à utopia e a sonhar e a viver a pátria que mais gostemos..


(12 de julho/2003)
CooJornal no 323


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
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Blog de Bruno Kampel: http://brunokampel.blogger.com.br