10/05/2003
Número - 314


 
Bruno Kampel


R.I.P


 

Nota do autor:
Só agora, depois de ter recebido a confirmação oficial do falecimento de uma querida amiga na Guerra do Iraque, e levando em consideração o fato de que alguns leitores também a conheceram, divulgo - com retoques cosméticos - este pequeno epitáfio que escrevi faz mais de uma ano por ocasião da morte de outra pessoa, porque parece escrito para quem parte antes do tempo, vítima do mais cruel dos destinos.

R.I.P


Ao nos deixares sem aviso, ficaste no Vazio da memória, preenchendo o espaço da tua própria Ausência.

Não faltará contudo quem decole manipulando tuas verdades indeléveis, mas será vôo rasante a sobrevoar a aridez da tua ausência.

E os que ficamos - executores de tuas últimas vontades - comprovaremos a contragosto que a Humanidade morre não apenas de saudade, e que as leis recusam serem aplicadas, e que sonhos e esperanças preferiram seguir-te a ter que povoar a mentira oficial do novo Imperador do mundo.

O que sim deixaste latente, usável, tangível, é um dilacerante beco sem saída, um desespero unilateral e sem fronteiras, e o livre arbítrio ajoelhado e cabisbaixo para sempre.

Ficou também - nas pessoas que te amamos tanto - a inutilidade de esperar sem recompensa a chegada do Vento trazendo o teu discurso, enquanto a dor do rumo que perdemos embaça o horizonte daqueles que aqui estamos a lembrar da proteção que nos brindaste.

As lições tatuadas na mortalha de cada um dos teus princípios e valores, habitará na retina daqueles que ficamos, como tomografía da carência mais sentida, e a certeza da injustiça de você ter sido fuzilada sem aviso, anunciará solene e quotidianamente que a dor da tua ausência é maior que a carícia com que a memória nos afaga.

Por isso, ao você partir de repente, morrendo irreversivelmente, a saudade é a única herança que deixaste.

Os que te amamos tanto, morreremos cada vez que sentirmos tua falta; e os que apenas te tocaram, morrerão um pouco cada vez que sentirem tua falta; e os que te mataram, purgarão o seu calvário cada vez que o arrependimento os visitar pedindo contas, e morrerão um pouco cada vez que sentirem tua falta.

Despeço-me de você, querida e inesquecível amiga, sabendo que o teu legado de esperança será difícil de impôr aos circunstantes, pois a Saudade que deixaste é tão profunda, que impede aceitar de fato a tua Ausência.

 


In Memoriam da Liberdade (França,1789 - Iraque, 2003),
vítima colateral da insanidade unilateral


(10 de maio/2003)
CooJornal no 314


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm