05/04/2003
Número - 309


 
Bruno Kampel


CARTA À LA CARTE


 

Num morrer de tarde que a noite executou sem atraso nem piedade, Demétrio, olhando as lembranças de outros tempos penduradas nas paredes do inverno que habitava, planejou inventar um quebra-cabeças feito com palavras de todas as cores e sentidos, que somadas fossem o enunciado de um teorema que só pudesse ser demonstrado por aqueles que pensam e sentem, e não pelos tantos que pensam que sentem.

O que realmente pretendia era escrever uma carta que mais do que uma simples missiva fosse um passaporte da sua sensibilidade, mostrando-o não de frente ou de perfil como exige a burocracia, mas de dentro para fora, como tem que ser.

Desejava que as palavras que pudesse alinhavar representassem um gesto, um pedido, uma oferta, um voto, e por que não, uma esperança, mesmo que atrelada a um não-sei-quê amargo chamado descrença.
Depois de pisar com a ponta dos pés alguns pesadelos que se aconchegavam junto à lareira, decidiu que iria escrever principalmente sobre o quanto a vivência gratifica, sobre o muito que a experiência ensina, sobre as incontáveis primaveras que pacientemente esperam ser colhidas nos anos vindouros.

Ao mesmo tempo que sacudia com a mão do presente algumas lembranças que imitando mosquitos fisgavam dolorosamente a pele da sua solidão, planejou discursar nessa carta sobre a importância da poesia sem palavras, ou ainda sobre assuntos relacionados com a felicidade e suas duas únicas verdades: encontrá-la e o medo de perdê-la.

Demétrio considerou – enquanto espanava a poeira de velhos fracassos que tiravam o brilho dos cristais da sua memória - que seria bom desejar à destinatária que pudesse conseguir que a pobreza de espírito tomasse conta de sua cabeça, para que desaprendesse de uma vez e para sempre a pensar a respeito da essência das coisas; para que renunciasse definitivamente a tratar de vencer as artimanhas da vida; para que pudesse finalmente render-se à evidência de que o conhecimento é um veneno mortífero.

Enquanto convidava ao anoitecer a entrar e ficar a vontade, prometeu-se deixar bem claro na carta, que um dos melhores remédios para sobreviver é nunca tentar entender ou tratar de averiguar o que realmente se esconde por trás das aparências, e jamais buscar a rima no verso da natureza humana.

Nesse ponto, Demétrio rabiscou sobre o cinza tormentoso da noite um lembrete para não esquecer de dizer que espera que a destinatária - como por arte de magia – desaprenda absolutamente tudo aquilo que aprendeu, pois se assim fosse, se de uma hora para outra esquecesse para que serve o conhecimento; se não mais desejasse medir o tempo que transcorre entre a intenção e o gesto, entre o quero e o posso, entre a dor e a lágrima; ou a distância em anos-luz entre o sei e o acho que sei, a carta que iria escrever teria então alcançado o seu objetivo, pois o resultado seria que ela, mais ignorante, muito mais apática, totalmente robótica e automática, teria alcançado a felicidade de igualar-se a quase todos os que a circundam. Não mais um ser pensante, porém algo meramente passante. Não mais a dúvida intelectual que exige saber comparar para poder escolher, mas a burrice social que tem resposta pronta para tudo. Nunca mais a incerteza dos que pensam, mas a infalível certeza dos ignorantes. Não mais a Cultura que soma, mas a telenovela que imbeciliza. Não mais receber cartas que façam sorrir ou chorar ou pensar ou gritar, mas apenas contas que exijam pagar e pagar e pagar. Nunca mais emocionar-se com a sonoridade das palavras, nem tremer ante o conteúdo das frases, nem chorar de alegria, nem rir à toa, pois finalmente teria alcançado o estágio no qual não mais sobrevivem as hipóteses. Não mais nada que não seja o nada em que o mundo nada.

Sim, claro, pudera eu... - matutou Demétrio enquanto a noite enchia outra vez o copo - bem que gostaria de ser um virtuoso para poder executar no violino em que se transforma a sua caneta cada vez que escreve, a única frase musical que faz dançar ao vetusto e carcomido homo sapiens. Sim, aquela com ritmo de valsa marcial, que diz “...a ignorância é o paraíso simsimsim…” (toca-se um solo em dor maior, repetindo-o até o último suspiro).

Que nada!... sentenciou Demétrio, ao mesmo tempo em que desparafusava um pouco de esperança da parede da noite e olhava pela janela como os pássaros buscavam o aconchego dos seus ninhos para enfrentar a travessia da escuridão que já ocupara o seu posto de comando. " Creio que essa é a receita da felicidade: não pense, só acredite", disse ele olhando desconfiado para as labaredas que lutavam na lareira uma guerra sem quartel contra o frio, ao mesmo tempo em que sacudia a cabeça num gesto entre impotente e esperançado.

Na realidade ele queria poder dizer nessa carta que nem conseguia começar a escrever, usando palavras certas e curtas e duras e graves, e ao mesmo tempo doces e limpas e rítmicas e mágicas, que se mesmo querendo ela não conseguisse parar de pensar; que se mesmo tentando não pudesse deixar de entender; que se mesmo chamando-a a gritos a felicidade não chegar; e se a esperança decidir ficar; e se a lágrima insone teimar em aparecer; e se o raciocínio vencer à apatia; e se a consciência predominar sobre os dogmas; e se o sentimento sobreviver aos ataques da tecnologia; e se a vontade de querer saber conseguir derrotar à necessidade de nada conhecer, pois então tudo seguirá como antes e ela certamente continuará a sentir-se como uma agulha no palheiro.

Nesse caso, Demétrio queria ser claro o suficiente para que ela ficasse sabendo que nessa sucessão de dias e noites que a natureza teima em parir regularmente, existe, ainda que espalhado em palheiros diferentes, um pequeno grande exército de agulhas que também recusaram a tranqüilidade dos pobres de espírito, e o paraíso do controle remoto, e a comodidade de não pensar, e a futilidade, e a passividade. Tentaria ser o suficientemente claro para que ela entendesse que ele, Demétrio, o Demétrio de sempre, era uma delas.

O que realmente queria era desenhar um cartão alegórico, mas como sempre, ah! esse sempre que religiosamente desmente os nossos projetos…, valeu mais a intenção que o resultado, pois a noite cansou de esperar sentada pela carta e abandonou o aconchego da poltrona junto à lareira quando Demétrio nem sequer conseguira esboçar um perfil definido do que teria gostado de escrever, e a carta uma vez mais morria nos trabalhos de parto, já que por mais que insistira e planejara, a dita cuja não se deixou escrever.

Demétrio, já acostumado a formular auto-desculpas que pelo menos lhe permitissem conciliar o sono, decidiu, enquanto desenhava na folha em branco de sua imaginação uma escadaria de mármore que o deixasse às portas do quarto onde a cama estava farta de esperá-lo, que a primeira coisa que faria quando acordasse seria comprar um par de óculos de sol, pois não achou nada melhor para não ver a tristeza invernal com que se vestem os seus dias, a cada hora mais noturnos, e as suas noites, a cada dia mais soturnas".



(05 de abril/2003)
CooJornal no 309


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm