Bruno Kampel
CARTA À LA CARTE
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Num morrer de tarde que a noite executou sem atraso nem piedade, Demétrio,
olhando as lembranças de outros tempos penduradas nas paredes do inverno
que habitava, planejou inventar um quebra-cabeças feito com palavras de
todas as cores e sentidos, que somadas fossem o enunciado de um teorema
que só pudesse ser demonstrado por aqueles que pensam e sentem, e não
pelos tantos que pensam que sentem.
O que realmente pretendia era escrever uma carta que mais do que uma
simples missiva fosse um passaporte da sua sensibilidade, mostrando-o não
de frente ou de perfil como exige a burocracia, mas de dentro para fora,
como tem que ser.
Desejava que as palavras que pudesse alinhavar representassem um gesto, um
pedido, uma oferta, um voto, e por que não, uma esperança, mesmo que
atrelada a um não-sei-quê amargo chamado descrença.
Depois de pisar com a ponta dos pés alguns pesadelos que se aconchegavam
junto à lareira, decidiu que iria escrever principalmente sobre o quanto a
vivência gratifica, sobre o muito que a experiência ensina, sobre as
incontáveis primaveras que pacientemente esperam ser colhidas nos anos
vindouros.
Ao mesmo tempo que sacudia com a mão do presente algumas lembranças que
imitando mosquitos fisgavam dolorosamente a pele da sua solidão, planejou
discursar nessa carta sobre a importância da poesia sem palavras, ou ainda
sobre assuntos relacionados com a felicidade e suas duas únicas verdades:
encontrá-la e o medo de perdê-la.
Demétrio considerou – enquanto espanava a poeira de velhos fracassos que
tiravam o brilho dos cristais da sua memória - que seria bom desejar à
destinatária que pudesse conseguir que a pobreza de espírito tomasse conta
de sua cabeça, para que desaprendesse de uma vez e para sempre a pensar a
respeito da essência das coisas; para que renunciasse definitivamente a
tratar de vencer as artimanhas da vida; para que pudesse finalmente
render-se à evidência de que o conhecimento é um veneno mortífero.
Enquanto convidava ao anoitecer a entrar e ficar a vontade, prometeu-se
deixar bem claro na carta, que um dos melhores remédios para sobreviver é
nunca tentar entender ou tratar de averiguar o que realmente se esconde
por trás das aparências, e jamais buscar a rima no verso da natureza
humana.
Nesse ponto, Demétrio rabiscou sobre o cinza tormentoso da noite um
lembrete para não esquecer de dizer que espera que a destinatária - como
por arte de magia – desaprenda absolutamente tudo aquilo que aprendeu,
pois se assim fosse, se de uma hora para outra esquecesse para que serve o
conhecimento; se não mais desejasse medir o tempo que transcorre entre a
intenção e o gesto, entre o quero e o posso, entre a dor e a lágrima; ou a
distância em anos-luz entre o sei e o acho que sei, a carta que iria
escrever teria então alcançado o seu objetivo, pois o resultado seria que
ela, mais ignorante, muito mais apática, totalmente robótica e automática,
teria alcançado a felicidade de igualar-se a quase todos os que a
circundam. Não mais um ser pensante, porém algo meramente passante. Não
mais a dúvida intelectual que exige saber comparar para poder escolher,
mas a burrice social que tem resposta pronta para tudo. Nunca mais a
incerteza dos que pensam, mas a infalível certeza dos ignorantes. Não mais
a Cultura que soma, mas a telenovela que imbeciliza. Não mais receber
cartas que façam sorrir ou chorar ou pensar ou gritar, mas apenas contas
que exijam pagar e pagar e pagar. Nunca mais emocionar-se com a sonoridade
das palavras, nem tremer ante o conteúdo das frases, nem chorar de
alegria, nem rir à toa, pois finalmente teria alcançado o estágio no qual
não mais sobrevivem as hipóteses. Não mais nada que não seja o nada em que
o mundo nada.
Sim, claro, pudera eu... - matutou Demétrio enquanto a noite enchia outra
vez o copo - bem que gostaria de ser um virtuoso para poder executar no
violino em que se transforma a sua caneta cada vez que escreve, a única
frase musical que faz dançar ao vetusto e carcomido homo sapiens. Sim,
aquela com ritmo de valsa marcial, que diz “...a ignorância é o paraíso
simsimsim…” (toca-se um solo em dor maior, repetindo-o até o último
suspiro).
Que nada!... sentenciou Demétrio, ao mesmo tempo em que desparafusava um
pouco de esperança da parede da noite e olhava pela janela como os
pássaros buscavam o aconchego dos seus ninhos para enfrentar a travessia
da escuridão que já ocupara o seu posto de comando. " Creio que essa é a
receita da felicidade: não pense, só acredite", disse ele olhando
desconfiado para as labaredas que lutavam na lareira uma guerra sem
quartel contra o frio, ao mesmo tempo em que sacudia a cabeça num gesto
entre impotente e esperançado.
Na realidade ele queria poder dizer nessa carta que nem conseguia começar
a escrever, usando palavras certas e curtas e duras e graves, e ao mesmo
tempo doces e limpas e rítmicas e mágicas, que se mesmo querendo ela não
conseguisse parar de pensar; que se mesmo tentando não pudesse deixar de
entender; que se mesmo chamando-a a gritos a felicidade não chegar; e se a
esperança decidir ficar; e se a lágrima insone teimar em aparecer; e se o
raciocínio vencer à apatia; e se a consciência predominar sobre os dogmas;
e se o sentimento sobreviver aos ataques da tecnologia; e se a vontade de
querer saber conseguir derrotar à necessidade de nada conhecer, pois então
tudo seguirá como antes e ela certamente continuará a sentir-se como uma
agulha no palheiro.
Nesse caso, Demétrio queria ser claro o suficiente para que ela ficasse
sabendo que nessa sucessão de dias e noites que a natureza teima em parir
regularmente, existe, ainda que espalhado em palheiros diferentes, um
pequeno grande exército de agulhas que também recusaram a tranqüilidade
dos pobres de espírito, e o paraíso do controle remoto, e a comodidade de
não pensar, e a futilidade, e a passividade. Tentaria ser o
suficientemente claro para que ela entendesse que ele, Demétrio, o
Demétrio de sempre, era uma delas.
O que realmente queria era desenhar um cartão alegórico, mas como sempre,
ah! esse sempre que religiosamente desmente os nossos projetos…, valeu
mais a intenção que o resultado, pois a noite cansou de esperar sentada
pela carta e abandonou o aconchego da poltrona junto à lareira quando
Demétrio nem sequer conseguira esboçar um perfil definido do que teria
gostado de escrever, e a carta uma vez mais morria nos trabalhos de parto,
já que por mais que insistira e planejara, a dita cuja não se deixou
escrever.
Demétrio, já acostumado a formular auto-desculpas que pelo menos lhe
permitissem conciliar o sono, decidiu, enquanto desenhava na folha em
branco de sua imaginação uma escadaria de mármore que o deixasse às portas
do quarto onde a cama estava farta de esperá-lo, que a primeira coisa que
faria quando acordasse seria comprar um par de óculos de sol, pois não
achou nada melhor para não ver a tristeza invernal com que se vestem os
seus dias, a cada hora mais noturnos, e as suas noites, a cada dia mais
soturnas".
(05 de abril/2003)
CooJornal
no 309