29/03/2003
Número - 308


 
Bruno Kampel


HERANÇA MALDITA: A NOVELA DO SÉCULO


 

(Com o patrocínio da Indústria bélica e petrolífera dos EUA)

Nos episódios anteriores:

George pai passava as noites agarrado com a mão esquerda a uma garrafa de horrível whisky canadense, e com a direita a um calado desespero que a insônia crônica teimava em manter aceso. Nas poucas horas em que conseguia conciliar o sono, terríveis pesadelos ocupavam militarmente todo o cenário das suas noites, ocasião em que era assaltado por 300.000 crianças iraquianas que morreram pelo efeito letal da fome que ele lhes presenteou, as quais pediam-lhe comida e não bombas, e noutro canto do pesadelo, soldados americanos mortos à toa, que em silêncio exigiam respostas, e pendurado na bainha dessa alucinação que o visitava, balançava-se o filho George W., que novamente tinha feito xixi na cama.

George o filho, além de dirigir uma empresa exploradora de paises exploradores de petróleo, gostava muito de não saber onde fica Paris e de não ter a mais remota idéia do nome da capital do estado de Nova Iorque, pois as suas duas verdadeiras e únicas paixões eram a bebida e ouvir sábios conselhos mugidos pelo gado que engordava no seu rancho texano. Quanto aos seus planos de futuro, eles giravam sobre dois desejos fundamentais: vingar o pai de todos os Bush, e aprender a ler e escrever.

Na Flórida - entretanto - o outro filho do pai comprou a patente da fórmula brasileira da fraude eleitoral, e ofereceu-a de presente ao irmão, para que tenha com que entreter as vazias e improdutivas horas da sua vida, o que de fato começou a fazer desde o primeiro momento em que a fraude consumada o obrigou a mudar de residência, transferindo-se de armas e bagagens (mais armas que bagagens) para a capital.

Então começou o caminho que conduziu ao penúltimo capítulo:

No princípio foi a notícia de que o filho do pai dispunha de informações anônimas e sem fundamento no sentido de que o Iraque mantinha estocada em lugar desconhecido a enorme parte sobrante das armas químicas, biológicas e de destruição em massa que Saddam havia recebido dos Estados Unidos e da Inglaterra para serem usadas contra o Irã dos aiatolás, o que - tanto para o pai quanto para o filho - significava que Saddam estava incumprindo as resoluções da ONU que exigiam a total destruição das mesmas.

Passados alguns meses, e depois de milhares de inspeções em dezenas de milhares de possíveis esconderijos, os centenas de inspetores da ONU acharam um ferro-velho cheio de nada perigoso, o que fez que o herdeiro do pai decidisse usar os serviços de verdadeiros profissionais para que façam o que é muito comum na política: fabricar provas, maquiar verdades, espalhar mentiras.

E assim foi feito. Saddam passou a ser cúmplice do seu grande inimigo Osama Bin Laden. E uma fotografia de uma escola, tirada pelo satélite espião, passou a ser um depósito de perigosas armas de destruição da América. E assim sucessivamente.

Propaganda de guerra que, para desespero do pai, do filho, e do espírito de porco que tomou conta das rédeas da diligência, terminou no maior fracasso jamais visto e ouvido, e então, inspirando-se na leitura da biografia da Pantera cor de rosa, decidiu dar o passo que acredita o conduzirá aos livros de História.

Não perca o próximo capítulo!

Nele veremos qual é esse passo decisivo para a Humanidade: dará ele a ordem de invadir? Autorizará o bombardeio indiscriminado? Deixará finalmente de usar chupeta?... Ou será que nos reserva um grand finale liberando o mundo das terríveis garras do mal, metendo uma bala na cabeça?...

Não perca. Assistir é de graça. A conta vem depois.


 RESUMO DA ÓPERA


O Bush filho do outro prometeu ao Bush pai da Guerra do Golfo que tirará o Saddam do poder e do mapa para terminar o que o Bush pai não soube fazer.

Então, usando e abusando do poder que tem sobre o mapa do mundo, fez e insistiu e pressionou e ameaçou, mas no fim a maioria esmagadora do mundo negou-se a ser cúmplice desse filho do Bush.

Hoje à noite provavelmente o Bush, sim, o filho da mãe do Governador da Florida, olhando através da lente das câmaras das Tvs como se fosse o pai de todos as respostas, pronunciará em vão o nome de Deus e se auto-investirá como o Paladino do Bem Universal, e ordenará às suas tropas que liberem o mundo da maldade encarnada no satânico Saddam.

Entretanto, fontes bem informadas comentam off-the-records que como conseqüência dos bombardeios com armas de destruição em massa que estão planejados para o horário nobre, surgirão os chamados danos colaterais, e como conseqüência deles é previsível que caiam feridos de morte a ONU, a Liberdade, a Democracia, a Fé, a Esperança, a Verdade, a Dignidade, o Respeito e os Direitos Humanos.

Segundo afirmam ao pé do ouvido esses mesmos porta-vozes da ignomínia, sempre existe o risco de que se tenham que contabilizar pequenas perdas - como as que se mencionam - pois elas são inevitáveis. O importante - dizem orgulhosos - é o Poder e o Petróleo. Quanto ao resto... salve-se quem puder.


FREUD EXPLICA


Sonhei que estava dormindo e dentro do silencioso embrulho do sono sonhava que estava sonhando um pesadelo terrível que a cada minuto parecia ainda maior e ainda pior.

Sonhava que no sonho que estava sonhando pedia por favor que alguém viesse me acordar, porque o sonho que pensava que sonhava era tão ruim, que sonhava que o meu coração suava por todos os poros do meu sonho

E o tempo - no sonho que sonhava que sonhava - não passava tão rapidamente como eu desejava - fazendo que eu sonhasse que sonhava que estava sonhando em câmara lenta.

Assim foram passando os segundos e os minutos e as horas, até que sonhei que sonhava que acordava do sonho que estava sonhando, e ao descobrir que tudo não passara de um sonho estrangeiro dentro do sonho, corri bem acordado e liguei a TV para assistir a posse do Presidente dos Estados Unidos. Sim. Lá estava o novo líder do gigante do Norte: o vitorioso Al Gore.

A CNN, num furo de reportagem, conseguiu conectar simultaneamente com a prisão do Texas para entrevistar a George Bush, quem se declarava arrependido de ter tentado roubar o resultado das eleições, e culpando a Saddam Hussein e a Bin Laden de tê-lo induzido ao crime.

As imagens retornaram à cerimônia na Casa Branca, mas algo devia estar funcionando mal na transmissão porque justo quando o Gore iria jurar, apareceram em cena Bin Laden e Saddam Hussein e Donald Runsfeld e Condolezza Rice e Dick Cheney e Tony Blair e Aznar e Musharraf portando um cartaz enorme que dizia em letras garrafais: o sonho acabou!

E foi justo nesse instante que o despertador tocou, avisando que a guerra estava começando.

E aqui estou, sintonizado na realidade dura e crua, recém acordado do sonho em que sonhava que estava sonhando, e esperando que comece a transmissão ao vivo do pesadelo em cores que sonhei que estava sonhando.

Tomara tudo não passasse de um sonho.


DIÁRIO

26.03.03
As bombas explodem em todas as manchetes, e a angústia trabalha sem descanso. As mentiras oficiais ficam cada vez mais obesas, e os mortos insistem em ser cada vez mais numerosos. Da Paz desconhece-se o paradeiro desde a primeira bala, enquanto que a maldita guerra ri à toa.

Os rouxinóis de Basra e de Bagdad e do norte da morte e do sul do mal decretam um minuto de silêncio em memória deles mesmos, vítimas colaterais do fogo multilateral.

A arcaica Mesopotâmia recebe desde o céu inesquecíveis lições de progresso tecnológico, enquanto os emissários do Bem distribuem epitáfios como se de guloseimas se tratasse.

O sangue amigo e o inimigo enlaçam-se num abraço desesperado e inesperado, e juntos saem de cena enquanto a esperança - num gesto teatral bem ensaiado -sucumbe ferida de morte aos pés do novo Imperador, e o Futuro cai prisioneiro dos afamados arquitetos da ignomínia.

Um seleto grupo de convidados de honra, que entusiasmado assiste à hecatombe desde o palco presidencial de Wall Street, aplaude com os bolsos, enquanto esfrega as mãos fazendo as contas dos dividendos que a Morte alheia pagou-lhes numa só semana.

Sim. Já sei a pergunta, mas não sei nem a resposta nem muito menos os motivos. Deus... Sim... Deus... Ausente. Como sempre.


Diário

27.03.2003
09:00 a 16:33

O Comando-Geral das Forças do Bem Supremo, reunido em sessão extraordinária na capital do Mundo, num local secreto localizado em qualquer parte de Camp David, chegou, depois de exaustivos monólogos da única autoridade presente, às seguintes conclusões, que para efeitos práticos têm força de lei nos territórios invadidos e no resto do mundo ainda por invadir:

Primeiro:
Proibir terminantemente aos iraquianos menores de 15 anos morrer despedaçados nas proximidades dos jornalistas, principalmente dos pertencentes à rede de TV Al Jazeera.

Segundo:
Condecorar a todos os valorosos soldados da coalisão que num gesto de bravura usaram o fogo amigo para matar os seus próprios companheiros antes que o fizessem os bárbaros iraquianos.

Terceiro:
Determinar às autoridades meteorológicas do Comando Unificado que a partir desta data suspendam as tormentas de areia com as quais se oculta a dificuldade de avançar, e as substituam por simples cortinas de fumaça criadas por uma enxurrada de informações inverossímeis que, somadas, deixem aos leitores sem lembrar nem do próprio nome.

Quarto:
Distribuir entre todos os correspondentes de guerra participantes da Opereta - e obrigá-los a divulgar o seu conteúdo - um comunicado no qual se desminta enfaticamente que tanto o Tribunal Penal Internacional quanto a Corte Internacional da Haia ou as Associações de Proteção aos Animais, tenham emitido uma ordem de prisão incondicional contra a genitora do atual presidente dos Estado Unidos e futuro Imperador do Oriente Médio, sob a falsa acusação de que seria a criadora da mais perigosa arma biológica de destruição em massa, o terrível e contaminante vírus que se conhece pelo codinome de George W.

Quinto:
Ordenar o imediato transporte para dentro das fronteiras do Iraque dos quatro containers que estão cansados de esperar no lado kuwaitiano, carregados com a suficiente quantidade de armas químicas e de destruição em massa para que possam ser armazenadas dentro da Escola Municipal de Basra e da mesquita de Nassrya. Uma vez depositadas lá, os jornalistas amigos serão convidados a fotografar e divulgar o achado, insistindo-se no fato de que tais evidências provam que o satânico Saddam tinha grandes estoques de morte alheia, e uma férrea determinação de usá-los.

Sexto:
Autorizar o uso de pequenas quantidades desse material contra as próprias tropas, para que os canais de informação afins, principalmente a rede Fox, tenham acesso aos quartos do hospital para filmar o sofrimento atroz dos soldados antes de morrer. Intercalar os gritos de dor inenarrável com fotos de Saddam e dos seus filhos participando de festas e orgias nababescas.

Sétimo:
Enviar um memorando aos responsáveis pela propaganda de guerra para que evitem qualquer referência à palavra morte quando se referirem aos soldados da coalisão, substituindo tal termo por frases do tipo ..."hoje mais 27 dos nossos soldados receberam permissão do comando para se alistarem como voluntários no Exército Divino.

Oitavo:
Providenciar que nos próximos bombardeios das grandes cidades seja adicionada à carga de explosivos que os anjos do Bem deixam cair sobre a população, pequenos embrulhos contendo sanduíches do McDonalds, pois tal arma tem a mesma efetividade que o gás mostarda dos tempos do Vietnam.

Nono:
Autorizar o aumento do número de mortos do inimigo.

Décimo:
Decretar a captura internacional dos Direitos Humanos, por atentarem contra os interesses dos Estados Unidos.

Publique-se. Cumpra-se. (assinado com uma impressão digital do polegar imperial direito)

17:00 - 23:59
Sem novidades no front. Bombas da mesma potência. Alvos do mesmo tipo. Mortos do mesmo sangue. Mentiras do mesmo gênero. Dizem as pitonisas que para amanhã a realidade nos ameaça com um par de novidades. Quem viver verá.


(29 de março/2003)
CooJornal no 308


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm