15/03/2003
Número - 306


 
Bruno Kampel


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 Escrever é criar. Criar é parir. Está clara a definição?... Não?... Então tratarei de explicar:

1.- Inspiro-me. Talvez porque passa no céu uma nuvem com forma de elefante, ou porque soa ao longe o sino do sorveteiro da praça da minha infância, ou porque o vento mexe sensualmente o cabelo da mulher que caminha na minha frente, ou porque me deixo envolver pelo aroma do passado que sai de uma janela numa esquina na qual espero a chegada da luz verde para poder atravessar, ou outra coisa pelo estilo, ou todas essas coisas juntas.

2.- Entro numa lanchonete, sento-me e peço um sanduíche e um café, e o primeiro que faço enquanto espero é tratar de construir mentalmente a frase que me atropelou quando procurava inspiração na lembrança do cabelo da mulher que caminhava na minha frente, ou quando adivinhei nas bocas de quase todos os fregueses o assovio característico do sorveteiro oferecendo-me una angina de chocolate e morango.

3.- A toalha de papel da mesa - branca como una virgem da idade média - adivinhando que eu andava à procura de um tema e das palavras que melhor o descrevessem - olha-me sedutoramente, e um lápis que escrevia apática e religiosamente preços e menus sobre a fumaça de um milhão de cigarros que flutuava entre as bandejas, olha para a imaculada toalha e aposta tudo numa carta, propondo-lhe um encontro que ela aceita sem vacilar, e eu, para não perder o hábito, traduzo os acontecimentos a palavras - desde o vôo rasante da nuvem paquidérmica até o idílico encontro do lápis e da branca toalha de papel - e as organizo numa frase que se ajoelha na ponta da minha imaginação e me implora que a escreva:

"... somar muito a pouco, restar importância aos fracassos, adicionar um pouco de esperança ao saldo da conta corrente da minha vida..."

4.- Logo depois, quando a taquicardia bate o relógio de ponto e começa a trabalhar e o primeiro que me diz é que estou no bom caminho, aproveito o pequeno espaço entre uma mordida no sanduíche e um olhar perdido nos desenhos que a fumaça de mil cigarros desenha a caminho do teto, para compor a minha obra prima - como são todas as idéias antes de que as reduzamos a uma pura e simples realidade. E assim continuo, procurando e encontrando palavras, mastigando e engolindo olhares, escutando e gravando silêncios, até que finalmente acabo asfaltando o caminho que frase a frase me conduz ao ponto final.

5.- Já em casa, e depois de depositar todos os haveres no ventre do computador, olho na telinha o que escrevi e retoco aqui e acolá, tirando de algumas frases o gosto do café requentado e de outras algumas manchas de sorvete que se misturaram entre os adjetivos, e depois de engraxar as frases e pentear o estilo me digo condescendentemente satisfeito: tá bom!... tá muito bom!... Ma-ra-vi-lha!...
E é assim que o meu texto ou meu poema, sim, MEU TEXTO ou MEU POEMA, e não de outros, e não da mulher do cabelo sensual nem do sorveteiro nem do dono da lanchonete nem do fabricante de café, está terminado, parido, nascido, vivo.

6.- Abro o programa de correio, digito o endereço eletrônico de alguns amigos virtuais, copio o texto ou o poema, o releio, o acaricio, despeço-me dele com um par de lágrimas virtuais, e ENTER.

7.- Um segundo depois o robô do servidor de correio já o lê com o rabo dos olhos. Alguns minutos mais tarde um de vocês o recebe, o abre, o lê, o mastiga, e se gosta ou detesta, o engole ou o cospe.

8.- Nesse exato momento o meu texto ou poema, gerado enquanto uma nuvem com trompa de elefante passeava pelo céu, gestado no útero de uma lanchonete, alimentado com um misto quente regado com o requentado sangue do café, e parido sobre uma toalha de papel com a indispensável colaboração de um lápis apaixonado, deixa de ser meu e passa a ser de todos.

9.- Fiz-me entender agora?... Meus textos ou poemas são nossos, não meus. E isso acontece por mostrá-los.

10.- Valha a ressalva: o único que realmente me pertence é o exercício de pescar idéias a partir das quais desenhar o próximo texto ou modelar o próximo poema. Isso sim que é meu, como minha é a angústia de não encontrar a palavra justa ou o desespero da página em branco. Bom, mas essa é outra história.



(15 de março/2003)
CooJornal no 306


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm