Bruno Kampel
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Escrever é criar. Criar é parir. Está clara a definição?... Não?... Então
tratarei de explicar:
1.- Inspiro-me. Talvez porque passa no céu uma nuvem com forma de
elefante, ou porque soa ao longe o sino do sorveteiro da praça da minha
infância, ou porque o vento mexe sensualmente o cabelo da mulher que
caminha na minha frente, ou porque me deixo envolver pelo aroma do passado
que sai de uma janela numa esquina na qual espero a chegada da luz verde
para poder atravessar, ou outra coisa pelo estilo, ou todas essas coisas
juntas.
2.- Entro numa lanchonete, sento-me e peço um sanduíche e um café, e o
primeiro que faço enquanto espero é tratar de construir mentalmente a
frase que me atropelou quando procurava inspiração na lembrança do cabelo
da mulher que caminhava na minha frente, ou quando adivinhei nas bocas de
quase todos os fregueses o assovio característico do sorveteiro
oferecendo-me una angina de chocolate e morango.
3.- A toalha de papel da mesa - branca como una virgem da idade média -
adivinhando que eu andava à procura de um tema e das palavras que melhor o
descrevessem - olha-me sedutoramente, e um lápis que escrevia apática e
religiosamente preços e menus sobre a fumaça de um milhão de cigarros que
flutuava entre as bandejas, olha para a imaculada toalha e aposta tudo
numa carta, propondo-lhe um encontro que ela aceita sem vacilar, e eu,
para não perder o hábito, traduzo os acontecimentos a palavras - desde o
vôo rasante da nuvem paquidérmica até o idílico encontro do lápis e da
branca toalha de papel - e as organizo numa frase que se ajoelha na ponta
da minha imaginação e me implora que a escreva:
"... somar muito a pouco, restar importância aos fracassos, adicionar um
pouco de esperança ao saldo da conta corrente da minha vida..."
4.- Logo depois, quando a taquicardia bate o relógio de ponto e começa a
trabalhar e o primeiro que me diz é que estou no bom caminho, aproveito o
pequeno espaço entre uma mordida no sanduíche e um olhar perdido nos
desenhos que a fumaça de mil cigarros desenha a caminho do teto, para
compor a minha obra prima - como são todas as idéias antes de que as
reduzamos a uma pura e simples realidade. E assim continuo, procurando e
encontrando palavras, mastigando e engolindo olhares, escutando e gravando
silêncios, até que finalmente acabo asfaltando o caminho que frase a frase
me conduz ao ponto final.
5.- Já em casa, e depois de depositar todos os haveres no ventre do
computador, olho na telinha o que escrevi e retoco aqui e acolá, tirando
de algumas frases o gosto do café requentado e de outras algumas manchas
de sorvete que se misturaram entre os adjetivos, e depois de engraxar as
frases e pentear o estilo me digo condescendentemente satisfeito: tá
bom!... tá muito bom!... Ma-ra-vi-lha!...
E é assim que o meu texto ou meu poema, sim, MEU TEXTO ou MEU POEMA, e não
de outros, e não da mulher do cabelo sensual nem do sorveteiro nem do dono
da lanchonete nem do fabricante de café, está terminado, parido, nascido,
vivo.
6.- Abro o programa de correio, digito o endereço eletrônico de alguns
amigos virtuais, copio o texto ou o poema, o releio, o acaricio,
despeço-me dele com um par de lágrimas virtuais, e ENTER.
7.- Um segundo depois o robô do servidor de correio já o lê com o rabo dos
olhos. Alguns minutos mais tarde um de vocês o recebe, o abre, o lê, o
mastiga, e se gosta ou detesta, o engole ou o cospe.
8.- Nesse exato momento o meu texto ou poema, gerado enquanto uma nuvem
com trompa de elefante passeava pelo céu, gestado no útero de uma
lanchonete, alimentado com um misto quente regado com o requentado sangue
do café, e parido sobre uma toalha de papel com a indispensável
colaboração de um lápis apaixonado, deixa de ser meu e passa a ser de
todos.
9.- Fiz-me entender agora?... Meus textos ou poemas são nossos, não meus.
E isso acontece por mostrá-los.
10.- Valha a ressalva: o único que realmente me pertence é o exercício de
pescar idéias a partir das quais desenhar o próximo texto ou modelar o
próximo poema. Isso sim que é meu, como minha é a angústia de não
encontrar a palavra justa ou o desespero da página em branco. Bom, mas
essa é outra história.
(15 de março/2003)
CooJornal
no 306