08/03/2003
Número - 305


 
Bruno Kampel


OS DEICIDAS ATACAM OUTRA VEZ


 

O incremento das manifestações anti-semitas/anti-judaicas gera sempre um sentimento de pânico/pavor/temor/angústia em todos aqueles que fazemos parte da família dos herdeiros da Inquisição e do Holocausto.

Não é fácil para nenhum judeu constatar o ressurgir de um sentimento que imperou durante quase dois mil anos até que acabou incorporado à herança genética dos seres humanos, e que só a grande publicidade dada às brutais atrocidades do nazismo ajudou a anestesiar.

Não. Não é nada fácil para um sobrevivente dos campos de extermínio assistir de camarote às vitórias dos partidos de extrema-direita nalguns países da Europa, vomitando nos seus discursos os mesmos slogans e consignas que não faz muito tempo serviram de bandeira a Hitler e a seus cúmplices.

Não. Nada fácil para um órfão do Holocausto ou para um neto de Auschwitz, ver como são invadidos e depredados cemitérios judeus por gente sem escrúpulos, e incendiadas sinagogas por energúmenos sem o mínimo resquício de moral, e judeus covardemente explodidos dentro de um ônibus ou na feira por fanáticos suicidas, pagando com a vida o preço de ser apenas judeus.

Sim. É mais do que difícil ver como em certos países surgem e se multiplicam os grupos de cabeças-rapadas usando a cruz suástica como símbolo, jurando a bandeira do nazismo como compromisso, pregando a ideologia da Gestapo como objetivo.

Hoje, mais do que ontem e muito mais do que dois anos atrás, os judeus estamos desprestigiados como democratas e devaluados como defensores dos direitos humanos. Os deicidas (os "assassinos" de Cristo) atacam outra vez, parece ser a consigna transmitida nas entrelinhas das cruas e seletivas imagens que os noticiários divulgam em todos os idiomas.

Basta recapitular para comprovar que durante os dois ou três últimos anos fomos e somos bombardeados pela televisão, pelas estações de rádio, pelos jornais nos seus editoriais e nas suas manchetes, com notícias, fotos, vídeos, artigos, contando, mostrando, analisando, situações acontecidas no teatro de operações do Oriente Médio, fazendo que a maioria da opinião pública mundial assumisse o fato de que Israel é o agressor e os palestinos os agredidos, o que resultou em que uns por desconhecimento da História, e outros por interesses mesquinhos, fizessem e façam declarações de marcado acento anti-semita, transformando ações ou omissões do governo de Israel - corretas ou incorretas - em crimes imputáveis a todos os cidadãos do Estado de Israel, e ainda pior, a todo o povo judeu.

Infelizmente, a opinião pública nada mais é do que um conjunto de pessoas que pensam com o coração, e o coração - bem o sabemos - não pensa, mas apenas se deixa levar por sensações, fatos ou discursos. E no caso de Israel, a Realidade é aliada dos que buscam minar a credibilidade do povo judeu, porque mostra em todos os canais, usando de todos os adjetivos desqualificativos, o lado condenável da ação do governo, mas não investe um segundo sequer em explicar que governos agem independentemente da vontade do povo, ou que a maioria esmagadora do povo judeu apóia uma saída pacífica para o conflito.

Portanto, não é de estranhar que voltemos a ouvir histórias sem fundamento sobre os Protocolos, ou assuntos similares, porque os que preferem nadar em águas agitadas (e elas estão) encontram um público propenso a aceitar tudo que seja uma condena aos assassinatos seletivos que assiste na TV, ao bombardeio de populações civis que vê quase que diariamente nos noticiários, à inoportunidade das declarações de certos porta-vozes dos grupos fundamentalistas judeus dizendo na CNN ou na BBC que os judeus têm o direito bíblico de ficar com as azeitonas das árvores dos palestinos, ou que Hebron e Amman são parte inseparável do grande Israel, e assim por diante.

Tudo isso faz que a reação aos brutais atentados suicidas seja inconscientemente minimizada, como se no fundo as pessoas pensassem "que horror!!!..." e imediatamente completassem a frase com "...mas eles não têm outra saída, porque não têm exército nem tanques nem defesas anti-aéreas, e sua terra está ocupada, e etc. e tal..."

E é aqui e agora que surge a obrigação que nenhum de nós pode ignorar, de formular uma única e crucial pergunta e buscar uma única e humanística resposta que seja filha legítima da imparcialidade e do senso comum:

Mas por quê?.... O que foi que aconteceu nos últimos dois ou três anos para que a fera que hibernava acordasse do seu letargo da pós-guerra?... O que foi que aconteceu, e se algo ocorreu, quem foi ou é o responsável de que o anti-semitismo deixasse as páginas dos livros de História e se instalasse na cotidianidade de tantas pessoas, de tantos coletivos, de tantas sociedades?...

Nessa pergunta termina o preâmbulo do problema. Agora, após esse introito que detecta a doença, só nos resta usar o bisturi, procurando o agente causador dessa degradação na saúde das relações entre judeus e gentis, entre judeus e judeus, e tratar de extirpá-lo antes que contagie a um maior e irreversível número de pessoas.

A doença, parece claro, foi adquirida em 1967. A Guerra dos Seis Dias, quando Israel antecipando-se atacou aos exércitos dos paises árabes, resultou numa enorme vitória militar e, contra todo prognóstico, numa grande vitória no campo das relações públicas, mostrando como "a valentia e inteligência da formiguinha conseguiu derrotar à força bruta do elefante".

Nunca desde a criação do Estado, Israel gozara de tanto prestígio e solidariedade. A conquista da parte oriental de Jerusalém fez com que muitos judeus ortodoxos e ultra-ortodoxos (majoritariamente anti-sionistas) peregrinassem ao muro das lamentações.

Foi exatamente aí - como "dano colateral" dessa vitória extraordinária - que paradoxalmente começou o dia de hoje.

Sim. Foi esse o cenário sobre o qual foram gerados e gestados os terríveis problemas que hoje nos afligem. Ali, nesse exato e fugaz instante da História, nasceu a justificativa que usam alguns macabros manipuladores de consciências para que os manipulados morram matando da forma mais vil que o gênero humano elocubrou: os ataques suicidas. Foi lá - há mais de 35 anos - que sem saber começamos a rezar kadish - a oração em memória dos nossos mortos - pelas tantas e desnecessárias vítimas inocentes de hoje.

Na medida em que nos omitamos ou fracassemos na tentativa de impor uma solução definitiva ao problema, estaremos deixando o terreno livre para os fundamentalismos que hoje dão as cartas no conflito.

Na medida em que não consigamos chegar ao coração da opinião pública mostrando os dois lados da moeda, estaremos deixando que a barbárie dite as regras do jogo, e assim aumentará a lista de espera dos suicidas e o ódio aos judeus e a população dos cemitérios.

Se não conseguirmos desmontar o cenário de morte e intolerância sobre o qual atuam hoje os protagonistas do drama, seremos primeiramente cúmplices, e finalmente vítimas.

Seria muito encorajador saber que alguns palestinos estão fazendo também uma auto-crítica, reconhecendo os erros terríveis cometidos por aqueles que tendo recebido o mandato de conduzir o seu povo à liberdade, o que realmente fizeram foi cair na armadilha do círculo vicioso e conduzi-lo às portas da morte, e o que é pior e degradante, aos ataques suicidas.

Fica aqui então a pergunta crucial e o convite para que cada um chegue à sua própria resposta, e para que depois, todos juntos, trabalhemos sobre as coincidências e não sobre as divergências, já que a união é a soma das diferenças, e é dessa união que todos estamos carentes.


(08 de março/2003)
CooJornal no 305


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm