Bruno Kampel
OS DEICIDAS ATACAM OUTRA VEZ
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O incremento das manifestações anti-semitas/anti-judaicas gera sempre um
sentimento de pânico/pavor/temor/angústia em todos aqueles que fazemos
parte da família dos herdeiros da Inquisição e do Holocausto.
Não é fácil para nenhum judeu constatar o ressurgir de um sentimento que
imperou durante quase dois mil anos até que acabou incorporado à herança
genética dos seres humanos, e que só a grande publicidade dada às brutais
atrocidades do nazismo ajudou a anestesiar.
Não. Não é nada fácil para um sobrevivente dos campos de extermínio
assistir de camarote às vitórias dos partidos de extrema-direita nalguns
países da Europa, vomitando nos seus discursos os mesmos slogans e
consignas que não faz muito tempo serviram de bandeira a Hitler e a seus
cúmplices.
Não. Nada fácil para um órfão do Holocausto ou para um neto de Auschwitz,
ver como são invadidos e depredados cemitérios judeus por gente sem
escrúpulos, e incendiadas sinagogas por energúmenos sem o mínimo resquício
de moral, e judeus covardemente explodidos dentro de um ônibus ou na feira
por fanáticos suicidas, pagando com a vida o preço de ser apenas judeus.
Sim. É mais do que difícil ver como em certos países surgem e se
multiplicam os grupos de cabeças-rapadas usando a cruz suástica como
símbolo, jurando a bandeira do nazismo como compromisso, pregando a
ideologia da Gestapo como objetivo.
Hoje, mais do que ontem e muito mais do que dois anos atrás, os judeus
estamos desprestigiados como democratas e devaluados como defensores dos
direitos humanos. Os deicidas (os "assassinos" de Cristo) atacam outra
vez, parece ser a consigna transmitida nas entrelinhas das cruas e
seletivas imagens que os noticiários divulgam em todos os idiomas.
Basta recapitular para comprovar que durante os dois ou três últimos anos
fomos e somos bombardeados pela televisão, pelas estações de rádio, pelos
jornais nos seus editoriais e nas suas manchetes, com notícias, fotos,
vídeos, artigos, contando, mostrando, analisando, situações acontecidas no
teatro de operações do Oriente Médio, fazendo que a maioria da opinião
pública mundial assumisse o fato de que Israel é o agressor e os
palestinos os agredidos, o que resultou em que uns por desconhecimento da
História, e outros por interesses mesquinhos, fizessem e façam declarações
de marcado acento anti-semita, transformando ações ou omissões do governo
de Israel - corretas ou incorretas - em crimes imputáveis a todos os
cidadãos do Estado de Israel, e ainda pior, a todo o povo judeu.
Infelizmente, a opinião pública nada mais é do que um conjunto de pessoas
que pensam com o coração, e o coração - bem o sabemos - não pensa, mas
apenas se deixa levar por sensações, fatos ou discursos. E no caso de
Israel, a Realidade é aliada dos que buscam minar a credibilidade do povo
judeu, porque mostra em todos os canais, usando de todos os adjetivos
desqualificativos, o lado condenável da ação do governo, mas não investe
um segundo sequer em explicar que governos agem independentemente da
vontade do povo, ou que a maioria esmagadora do povo judeu apóia uma saída
pacífica para o conflito.
Portanto, não é de estranhar que voltemos a ouvir histórias sem fundamento
sobre os Protocolos, ou assuntos similares, porque os que preferem nadar
em águas agitadas (e elas estão) encontram um público propenso a aceitar
tudo que seja uma condena aos assassinatos seletivos que assiste na TV, ao
bombardeio de populações civis que vê quase que diariamente nos
noticiários, à inoportunidade das declarações de certos porta-vozes dos
grupos fundamentalistas judeus dizendo na CNN ou na BBC que os judeus têm
o direito bíblico de ficar com as azeitonas das árvores dos palestinos, ou
que Hebron e Amman são parte inseparável do grande Israel, e assim por
diante.
Tudo isso faz que a reação aos brutais atentados suicidas seja
inconscientemente minimizada, como se no fundo as pessoas pensassem "que
horror!!!..." e imediatamente completassem a frase com "...mas eles não
têm outra saída, porque não têm exército nem tanques nem defesas
anti-aéreas, e sua terra está ocupada, e etc. e tal..."
E é aqui e agora que surge a obrigação que nenhum de nós pode ignorar, de
formular uma única e crucial pergunta e buscar uma única e humanística
resposta que seja filha legítima da imparcialidade e do senso comum:
Mas por quê?.... O que foi que aconteceu nos últimos dois ou três anos
para que a fera que hibernava acordasse do seu letargo da pós-guerra?... O
que foi que aconteceu, e se algo ocorreu, quem foi ou é o responsável de
que o anti-semitismo deixasse as páginas dos livros de História e se
instalasse na cotidianidade de tantas pessoas, de tantos coletivos, de
tantas sociedades?...
Nessa pergunta termina o preâmbulo do problema. Agora, após esse introito
que detecta a doença, só nos resta usar o bisturi, procurando o agente
causador dessa degradação na saúde das relações entre judeus e gentis,
entre judeus e judeus, e tratar de extirpá-lo antes que contagie a um
maior e irreversível número de pessoas.
A doença, parece claro, foi adquirida em 1967. A Guerra dos Seis Dias,
quando Israel antecipando-se atacou aos exércitos dos paises árabes,
resultou numa enorme vitória militar e, contra todo prognóstico, numa
grande vitória no campo das relações públicas, mostrando como "a valentia
e inteligência da formiguinha conseguiu derrotar à força bruta do
elefante".
Nunca desde a criação do Estado, Israel gozara de tanto prestígio e
solidariedade. A conquista da parte oriental de Jerusalém fez com que
muitos judeus ortodoxos e ultra-ortodoxos (majoritariamente
anti-sionistas) peregrinassem ao muro das lamentações.
Foi exatamente aí - como "dano colateral" dessa vitória extraordinária -
que paradoxalmente começou o dia de hoje.
Sim. Foi esse o cenário sobre o qual foram gerados e gestados os terríveis
problemas que hoje nos afligem. Ali, nesse exato e fugaz instante da
História, nasceu a justificativa que usam alguns macabros manipuladores de
consciências para que os manipulados morram matando da forma mais vil que
o gênero humano elocubrou: os ataques suicidas. Foi lá - há mais de 35
anos - que sem saber começamos a rezar kadish - a oração em memória dos
nossos mortos - pelas tantas e desnecessárias vítimas inocentes de hoje.
Na medida em que nos omitamos ou fracassemos na tentativa de impor uma
solução definitiva ao problema, estaremos deixando o terreno livre para os
fundamentalismos que hoje dão as cartas no conflito.
Na medida em que não consigamos chegar ao coração da opinião pública
mostrando os dois lados da moeda, estaremos deixando que a barbárie dite
as regras do jogo, e assim aumentará a lista de espera dos suicidas e o
ódio aos judeus e a população dos cemitérios.
Se não conseguirmos desmontar o cenário de morte e intolerância sobre o
qual atuam hoje os protagonistas do drama, seremos primeiramente
cúmplices, e finalmente vítimas.
Seria muito encorajador saber que alguns palestinos estão fazendo também
uma auto-crítica, reconhecendo os erros terríveis cometidos por aqueles
que tendo recebido o mandato de conduzir o seu povo à liberdade, o que
realmente fizeram foi cair na armadilha do círculo vicioso e conduzi-lo às
portas da morte, e o que é pior e degradante, aos ataques suicidas.
Fica aqui então a pergunta crucial e o convite para que cada um chegue à
sua própria resposta, e para que depois, todos juntos, trabalhemos sobre
as coincidências e não sobre as divergências, já que a união é a soma das
diferenças, e é dessa união que todos estamos carentes.
(08 de março/2003)
CooJornal
no 305