Bruno Kampel
ACREDITE SE PUDER
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Esta madrugada despi todas as minhas fantasias, uma por uma. Primeiro a de
sabe-tudo, depois a de indispensável, a seguir a de importante e logo
depois a de prepotente. Descansei um pouco e continuei. Tirei a de
diretor, e a de poeta, e a de escritor, e por último a de capitalista e
explorador.
Corri cheio de curiosidade até o espelho, e lá dei de frente com um grande
dedo acusador que me apontava com cara de poucos amigos, mas o que maior
impacto me causou foi constatar que o que sobrou de mim era o único que
tinha esquecido que era.
Sim, por trás do grande dedo que não deixava de acusar-me sem palavras,
aparecia refletida a imagem de um garoto cheio de anos, com uma bola de
borracha embaixo do braço, uma atiradeira na mão, um sorriso virgem nos
olhos, um futuro brilhante aos seus pés, uma esperança enorme não
cabendo-lhe nos bolsos, a frente sem rugas, o corpo sem marcas, a vida sem
dores.
Sim, foi isso que vi, até que de repente acordei, e ao procurar-me entre
as dobras das horas noturnas não pude encontrar-me por mais que o tentara.
Agora, quando o dia acabou de transformar a madrugada em simples
pretérito, só sei que não sei muito bem onde estou e que apenas suponho
quem sou, e por isso o único que posso e faço e começar a procurar-me.
Iniciarei a investigação pelo espelho, e se lá não me encontro irei até
uns vinte anos atrás, e se tampouco me acho, então não terei mais remédio
que encostar-me nas horas que passam e pacientemente esperar até que eu
volte quando voltar e venha de onde vier.
(01 de março/2003)
CooJornal
no 304