Bruno Kampel
Aos jornalistas, poetas e escritores
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AOS ESCREVINHADORES QUE
ESCREVINHANDO ESCREVINHAÇÕES
ESCREVINHAM A VIDA E A MORTE,
RABISCAM O IR E O VIR, DESCREVEM O
SER E O
ESTAR, DEFINEM O QUERER E O
PODER, TINTIM POR TINTIM, DE ACORDO
COM O SEU
SABER ENTENDER.
Ainda não sei com certeza se foi um grande sonho, uma oportuna alucinação,
um imprevisto pesadelo, uma simples bebedeira, ou o evento aconteceu de
fato. O que sim garanto é que ocorreu ontem logo depois de deitar e um
pouco antes de adormecer (ou terá sido ao contrário?...)
Bem, pouco importa a ordem cronológica. Tenha sido antes, durante ou
depois, o fato é que a mensagem chegou de repente, como que trazida pelo
vento que lá fora batia impaciente contra a janela do quarto. Pensando
melhor, ela talvez estivesse camuflada dentro da garrafa de whisky que
pouco antes abrira para afogar um pouco a sede crônica da minha solidão
escandinava.
Tratava-se de uma folha de caderno incompleta, amarrotada e em branco,
dessas nas quais após uns segundos de perplexidade, as letras aparecem e
acomodam-se ordeiramente, parindo palavras organizadas em frases, que a
medida em que as digerimos adquirem significado, significância, corpo,
volume, essência, peso, valor.
A bem da verdade, ela não estava dirigida a mim, mas ao lê-la tive certeza
que não fora o acaso que a trouxera. Era bem curta, mas funda. E, ainda
que não mais a tenha comigo, já que o que chega de noite pernoita mas não
amanhece, lembro do texto quase como se eu o tivesse escrito.
Era mais ou menos este:
".. lembrar sempre, em cada letra que imprimir, em qualquer argumento que
escolher, em todos os ardís que elocubrar para travestir a fragilidade
interior; em todos as imagens que verter sobre o bendito papel que tudo
aceita; em cada um dos hieroglifos que esculpir tentando explicar-se ao
próximo, que cada frase/estrofe/verso é uma estrada que conduz às
entranhas da mais profunda intimidade, ao quarto de despejo das mais
escondidas angústias, aos bem guardados segredos que descifram o código
genético de todas as nossas carências.
Não esquecer nunca que ao escrever instaura-se em cada parágrafo um
púlpito desde o qual confessa-se de viva voz e sem direito ao
arrependimento, o tamanho das feridas, a profundidade das cicatrizes, o
peso específico das dores. Tratar sempre, por causa disso, de alimentar a
curiosidade insaciável dos leitores, servindo-lhes um prato cheio de
meias-palavras, de gestos contidos, de silêncios apenas esboçados, de
sinuosidade despistante.
Na sobremesa da leitura, não esqueça de convidar aos olhares indiscretos
que visitarem os seus dizeres, a digerirem sem pressa os seus conceitos,
as suas idéias, o seu silêncio, e principalmente, cuide que os comensais
ao partirem, levem algumas verdades embrulhadas para viagem, outros tantos
embustes para consumo imediato, e se possível, uma lágrima de carne e osso
- ainda que apenas metafórica - que os obrigue a dizer "não, não, não é
nada, foi apenas um cisco". Lembre também que a folha sobre a qual verte
os seus dizeres será a ante-sala de sua alma. Que seja, então, o espelho
dela.
O que sim, nunca permitir que o seu cantar, que o seu contar, deixe de ser
envolvente para quem chega, decorado em tons que lembrem o encontro e não
a partida; com móveis que convidem ao descanso e não à crispação.
Diga, nesse mea culpa que subjaz no intestino do seu desleixado talento de
saber dizer, o que pensa e sente e espera e sonha, que é esse o seu dever
- mas faça-o olhando de frente, nunca esquecendo que o leitor é o seu
convidado de honra, o seu amante de turno, o seu verdugo.
Saiba qu.....
Pois é. Era isso e nada mais. Apenas um pedaço de um conselho de amigo que
não sei se foi a noite escandinava que o escreveu, o Chivas que o inspirou
, a solidão que o gestou, o pesadelo que o gerou, a alucinação que o
lapidou. Não sei. Nem importa. Basta-me saber que não basta saber, que não
se trata de apenas escrever, nem muito menos de somente dizer.
(01 de março/2003)
CooJornal
no 304