01/03/2003
Número - 304


 
Bruno Kampel


Aos jornalistas, poetas e escritores


 

AOS ESCREVINHADORES QUE
ESCREVINHANDO ESCREVINHAÇÕES
ESCREVINHAM A VIDA E A MORTE,
RABISCAM O IR E O VIR, DESCREVEM O
SER E O ESTAR, DEFINEM O QUERER E  O
PODER, TINTIM POR TINTIM, DE ACORDO
COM O SEU SABER ENTENDER.


Ainda não sei com certeza se foi um grande sonho, uma oportuna alucinação, um imprevisto pesadelo, uma simples bebedeira, ou o evento aconteceu de fato. O que sim garanto é que ocorreu ontem logo depois de deitar e um pouco antes de adormecer (ou terá sido ao contrário?...)

Bem, pouco importa a ordem cronológica. Tenha sido antes, durante ou depois, o fato é que a mensagem chegou de repente, como que trazida pelo vento que lá fora batia impaciente contra a janela do quarto. Pensando melhor, ela talvez estivesse camuflada dentro da garrafa de whisky que pouco antes abrira para afogar um pouco a sede crônica da minha solidão escandinava.

Tratava-se de uma folha de caderno incompleta, amarrotada e em branco, dessas nas quais após uns segundos de perplexidade, as letras aparecem e acomodam-se ordeiramente, parindo palavras organizadas em frases, que a medida em que as digerimos adquirem significado, significância, corpo, volume, essência, peso, valor.

A bem da verdade, ela não estava dirigida a mim, mas ao lê-la tive certeza que não fora o acaso que a trouxera. Era bem curta, mas funda. E, ainda que não mais a tenha comigo, já que o que chega de noite pernoita mas não amanhece, lembro do texto quase como se eu o tivesse escrito.

Era mais ou menos este:

".. lembrar sempre, em cada letra que imprimir, em qualquer argumento que escolher, em todos os ardís que elocubrar para travestir a fragilidade interior; em todos as imagens que verter sobre o bendito papel que tudo aceita; em cada um dos hieroglifos que esculpir tentando explicar-se ao próximo, que cada frase/estrofe/verso é uma estrada que conduz às entranhas da mais profunda intimidade, ao quarto de despejo das mais escondidas angústias, aos bem guardados segredos que descifram o código genético de todas as nossas carências.
Não esquecer nunca que ao escrever instaura-se em cada parágrafo um púlpito desde o qual confessa-se de viva voz e sem direito ao arrependimento, o tamanho das feridas, a profundidade das cicatrizes, o peso específico das dores. Tratar sempre, por causa disso, de alimentar a curiosidade insaciável dos leitores, servindo-lhes um prato cheio de meias-palavras, de gestos contidos, de silêncios apenas esboçados, de sinuosidade despistante.


Na sobremesa da leitura, não esqueça de convidar aos olhares indiscretos que visitarem os seus dizeres, a digerirem sem pressa os seus conceitos, as suas idéias, o seu silêncio, e principalmente, cuide que os comensais ao partirem, levem algumas verdades embrulhadas para viagem, outros tantos embustes para consumo imediato, e se possível, uma lágrima de carne e osso - ainda que apenas metafórica - que os obrigue a dizer "não, não, não é nada, foi apenas um cisco". Lembre também que a folha sobre a qual verte os seus dizeres será a ante-sala de sua alma. Que seja, então, o espelho dela.

O que sim, nunca permitir que o seu cantar, que o seu contar, deixe de ser envolvente para quem chega, decorado em tons que lembrem o encontro e não a partida; com móveis que convidem ao descanso e não à crispação.

Diga, nesse mea culpa que subjaz no intestino do seu desleixado talento de saber dizer, o que pensa e sente e espera e sonha, ­que é esse o seu dever - mas faça-o olhando de frente, nunca esquecendo que o leitor é o seu convidado de honra, o seu amante de turno, o seu verdugo.

Saiba qu.....


Pois é. Era isso e nada mais. Apenas um pedaço de um conselho de amigo que não sei se foi a noite escandinava que o escreveu, o Chivas que o inspirou , a solidão que o gestou, o pesadelo que o gerou, a alucinação que o lapidou. Não sei. Nem importa. Basta-me saber que não basta saber, que não se trata de apenas escrever, nem muito menos de somente dizer.
 

(01 de março/2003)
CooJornal no 304


Bruno Kampel  é analista político, poeta e escritor.
Reside atualmente na Suécia.
bkampel@home.se 
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm