01/02/2003
Número - 300

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Bruno Kampel



EUROPA: ESQUERDA, VOLVER!

 

Europa está virando à direita, afirmam as principais manchetes do dia-a-dia, e devo confessar que não mentem. Le Pen e Heider, Dinamarca e Noruega, a Itália de Berlusconi e Fini, e a França do novo e radicalizado Chirac, e a Holanda dos herdeiros de Fortuyn, e a Espanha do neo-franquismo travestido de demócrata, e os governos de alguns "lands" alemães, e Portugal novamente nas mãos dos que foram derrotados em 1975, já estão – direta ou indiretamente - gerindo os dinheiros públicos de acordo com a cartilha do liberalismo sem freio - o mesmo que transforma conquistas sociais em papel molhado - e usando com mestria os meios de comunicação para criar cortinas de fumaça, fabricando inimigos mortais que facilitem a imposição do pensamento único, o tal que “nos protege”, bastando, para que isso ocorra, com reduzir a “excessiva” liberdade individual e construir uma maior e onipotente e onipresente realidade virtual que tenha - na identificação e demonização dos que a ela se opõem - a base simplista porém efetiva do sorrateiro avanço do fascismo, militarizando o pensamento, hierarquizando-o de cima para baixo.

Europa está virando à direita, garantem os cientistas políticos, e devo confessar que dizem a verdade. A pior, a mais dolorosa e definitiva prova disso é a constatação de que a esquerda européia está virando à direita.

A Inglaterra do esquerdista Tony Blair bombardeia há 10 anos de forma quase diária o Iraque, sem mandato da ONU, sem justificativa estratégica, enquanto o resto da Europa olha para outro lado. Sim, para o mesmo lado que olha a esquerda européia quando ouve o discurso xenófobo do governo da Dinamarca, e da Áustria, e da Itália, e da Holanda. O mesmíssimo lugar para o qual olha o socialismo europeu quando Le Pen diz o que diz, e Haider propõe o que propõe, e Berlusconi faz o que faz.

A fórmula pela qual a direita conquista espaços é velha mas não está caduca. Primeiro acapara os meios de comunicação. Depois instaura seu modelo econômico, esse que concede privilégios ao capital frente ao trabalho. E essa receita necessariamente conduz ao enfraquecimento do poder de compra dos assalariados, ao aumento do índice de desemprego, à violação cada vez menos disfarçada dos contratos coletivos de trabalho - já seja pela robotização das linhas de produção em detrimento da mão de obra de carne e osso, ou pelos recortes das conquistas sociais obtidas pelos trabalhadores durante o século XX.

A globalização, que mundializa os preços mas não os salários, que abre os mercados para os produtos dos paises industrializados mas cria barreiras alfandegárias para os produtos oriundos dos paises mais pobres, na verdade é a antítese da globalização tal qual a definem os dicionários, já que em última instância o que realmente faz é concentrar na mão de poucas empresas - com domicílio fiscal em pouquíssimos países - a propriedade dos grandes meios de produção, o que propicia que nesses poucos países suba o standard de vida das classes média e alta, enquanto que nos outros a miséria se alastra imparável desde o centro até a base da pirâmide social. Sim, os salários dos estratos inferiores da classe média perdem peso específico e transformam a quem deles vivem em classe pobre, e os pobres, que pouco podiam antes, perdem esse quase nada e passam a engrossar o coletivo dos miseráveis, que vítimas da desesperança afundam ainda mais na impossibilidade de prover o mínimo alimento indispensável à simples sobrevivência.

O “aburguesamento” dos ideais de esquerda, promovido na Europa Ocidental por líderes socialistas cada vez melhor vestidos, dirigindo carros cada vez mais potentes, mas cada vez menos socialistas tanto no fazer como no dizer, não começou com os acontecimentos do 11 de setembro. Ela – a esquerda - vinha depauperando-se programaticamente até o ponto em que era e é difícil diferenciar esquerda de direita, já que enquanto a direita européia adotou um discurso populista e optou por conquistar o poder a qualquer preço, a esquerda, poucas vezes com o seu tímido protesto, mais vezes com o seu silêncio, e muitas mais vezes com a sua cumplicidade, serviu de trampolim para que finalmente acontecesse o inimáginavel: a direita falando em nome dos assalariados.

Um fator importantíssimo na perda de credibilildade da esquerda européia foi e é a forma esdrúxula que usou e ainda usa para definir e enfrentar o controvertido problema da imigração, e isso a despeito de que na Europa não é difícil, dado o baixíssimo índice de natalidade, justificar a entrada de grandes contingentes de imigrantes.

A esquerda, arrastada pela sistemática pressão da mídia monoliticamente controlada pela direita, caiu na mais cruel das armadilhas, qual seja a de ficar sem discurso. Com medo de dizer que defende a imigração e assim perder votos, calou-se, concordando por omissão com a mensagem xenófoba e não poucas vezes racista da direita, e esta, aproveitando-se da apatia inoperante da esquerda, radicalizou suas posições até que estas germinaram e frutificaram os Heider e Le Pen e Fortuyn e Fini et cætera.

Essa encruzilhada, não podemos esquecer, não nasce por geração espontânea, pois tem fundamento e raízes. A imigração que bateu e bate às portas da Europa comunitária (ou que entrou e entra pela porta dos fundos, sem licença), é fundamentalmente oriunda da África negra e do Magreb, significando isso que chegou com uma bagagem carregada de realidades que “dificultam” a sua integração, quais sejam a cor da pele, a fé muçulmana e a pobreza material.

Com a cor da pele atiçam o racismo enraizado nos subterrâneos genéticos da cultura européia. Com a fé no Corão levantam contra si ao Cristianismo em todas as suas variantes, até então majoritário e dominante, quase monopolista. E com a pobreza assustam às classes mais desfavorecidas, essas que sempre engrossaram as filas da esquerda até que a imigração chegou e "ameaçou" e "ameaça" diretamente com apropriar-se das suas fontes de trabalho, porque inescrupulosos patrões de direita usam a mão-de-obra imigrante para reduzir custos, já que estes imigrantes – para não morrer de fome – aceitam receber menos que os nacionais pelo mesmo trabalho, e muitas vezes nem sequer recebem a cobertura social obrigatória nos paises da Europa Ocidental. E isso ocorre – claro - com o beneplácito dos governos.

Ante um quadro como esse, que mostra a uma esquerda esclerosada e em estado quase terminal, o doente tem um repto crucial que deve enfrentar – para poder sobreviver - com idéias claras, projetos viáveis, e muita astúcia política.

Chegou a hora de modernizar a esquerda na Europa, dando um passo para trás. Sim, voltando aos comitês de bairro, à imprensa alternativa, à denúncia sistemática das violações dos direitos sociais, às campanhas para melhorar a situação dos imigrantes, à promoção de encontros de grupos de imigrantes com grupos de trabalhadores, ao reforçamento da atuação sindical dentro dos locais de trabalho, à defesa sem fissuras dos direitos humanos.

Chegou também a hora de modernizar as lideranças da esquerda européia, dando outro passo para trás. Sim, voltando a eleger líderes à medida dos programas, e não o contrário, como vem acontecendo nos últimos anos. Líderes que devam obediência aos princípios, e não princípios elaborados ao gosto deles.

A direita é hoje – nem mais nem menos - o que a esquerda lhe deixou ser. Urge portanto retornar ao passado e recuperar as rédeas do Humanismo, assumindo a responsabilidade que ser esquerdista impõe, ou caso contrário, só restará fechar o negócio, pedir concordata e exalar o último suspiro.


Leia, também, nesta edição:  Manifesto das Ovelhas Negras

(01 de fevereiro/2003)
CooJornal no 300
  


Bruno Kampel
escritor
Suécia
bruno.kampel@zeta.telenordia.se
http://kampel.com/poetika/brunokampel.htm