16/10/2020
Ano 23 - Número 1.193
ARQUIVO BRAZ CHEDIAK
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Braz Chediak
VIAGEM AO XINGU
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Quando jovem, passei uns tempos filmando na Reserva do Xingu, com os
irmãos Villas-Boas. Conheci os Camaiurás, os Uilapitis, os Tikões... e me
fascinei com a simplicidade, a verdade daqueles povos. Senti que eram
felizes. E essa felicidade não vinha apenas por se saberem protegidos
pelos grandes sertanistas, Cláudio e Orlando Villas-Boas, mas por terem
uma vida plena, em contato direto com a terra, em harmonia com o universo.
Para os índios, a mata, os rios, os animais, os pássaros, os insetos -
vivos e mortos - fazem parte do grande Mavotsinim, o Deus, o Cosmo, o
Todo. Não há a moral cartesiana, que separa e divide o Ser Humano e,
portanto, não há medos.
Uma das coisas que observei é que os índios
não têm calendários nem espelhos e, sem calendário, o tempo para eles, é o
hoje, o agora. Sem espelhos, não percebem seu próprio envelhecimento. Eles
não temem o fim, são eternos.
Até mesmo na sua Arte vi a
eternidade. Os índios tocam a música, dançam a dança, pintam a pintura que
aprenderam com seus antepassados. A Arte indígena é paradigma, sem
contestações tolas, como o risco do bordado, e evolui como todas as
coisas: mas sem pressa e sem pausa.
Sem pressa e sem pausa também
caminha a vida e, uma tarde, vendo uma indiazinha, uma jovem mãe, carregar
seu filho grudado no corpo enquanto lhe cantava canções de sua tribo, me
comovi tanto que tive vontade de ficar ali para sempre.
Naquela
época eu estava lendo um velho romance de Jean Giono e havia um trecho em
que o narrador, ao ver que a personagem feminina não cantava para o filho,
dizia a si mesmo: “Então ela não canta nunca para o garoto? Não sabe que
as mães fazem simultaneamente leite e canções para o apetite da boca e o
apetite do cérebro? Ele será então um menino que da vida só conhecerá os
maus ruídos, os ruídos ásperos? Não terá sob sua cabeça as canções de mãe
que parecem frutos e que eu, por infeliz que seja ainda tenho bem frescos,
bem roliços e bem sumarentos?”
Pensando no romance, em sua trama de
desencontros, e vendo aquela indiazinha tratar com tanta ternura seu
filho, imaginei que por fatos como estes o jovem Artaud procurou a
perfeição entre os Tarahumaras, no México, pois eles, como os nossos
índios, representavam um ideal de harmonia entre a Arte e a Vida. As mães
Tarahumaras, tenho certeza, cantavam para seus filhos, como a terra canta
para nós.
Os índios, ao invés do tradicional tapa na bunda que nós
damos nos recém nascidos, jogam sobre eles uma cuia d’água. Talvez por
isto suas crianças tenham tanta ligação com a água, pois ela, ao invés de
estar ligada ao afogamento, está ligada à primeira respiração. Talvez por
isto me encantei ao vê-las brincando dentro de uma grande e límpida lagoa,
onde as ondas, formadas por seus movimentos, se assemelhavam a pétalas
móveis e elas, as crianças, pareciam pequenas abelhas dentro de uma flor.
Como estavam alegres. Aquelas crianças pertenciam à alegria. Elas
riam porque o sol estava quente, o céu estava azul, as araras voavam em
bandos. Elas riam porque havia peixe e biju de farinha. Elas riam porque
eram crianças índias e estavam na água. Os indiozinhos, ao contrário de
nossas crianças, gostam do banho, tomam diversos banhos por dia não para
se limparem, pois são naturalmente limpos, mas porque a água também é a
grande mãe.
Minha vida sempre foi incerta e errante. Muitas vezes
não tive um travesseiro para repousar a cabeça à noite. Muitas vezes não
tive o pão de cada dia para me alimentar o corpo, ou uma companheira para
me alimentar o espírito. Muitas vezes estive só. Mas desde que conheci os
índios carreguei comigo o sentimento de que estava viajando. Não a viagem
à selva, de avião, de jipe ou de barco. Mas a viagem da vida. E o
sentimento desta viagem me ajudou a compreender-me.
Ajudou-me a
compreender que um dia estaremos todos juntos, todos brincando, na mesma
canoa, como as crianças índias. Navegando nos Páramos eternos, no grande
OM, na grande paz.
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
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