01/11/2019
Ano 22 - Número 1.147





ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK 



 

Venha nos
visitar no Facebook



 

Braz Chediak



A VIAGEM



Algumas coisas ficam na memória da gente, como, por exemplo, um passarinho, uma música, uma mulher... E é de uma mulher que estou me lembrando agora. Explico: há alguns anos, fiz uma viagem ao Nordeste e, numa cidadezinha da Bahia, o ônibus parou para abastecer. Era madrugada, a cidade estava vazia, silenciosa.

Desci para tomar um café e vi, num sobradinho defronte à rodoviária, uma janela iluminada e a mulher debruçada em seu parapeito. Pela transparência do tecido imaginei que ela estava nua dentro do vestido.

E uma mulher nua sempre me despertou ternura.

Estava sozinha, solitária, talvez sonhando com o milagre de um encontro. Talvez, quem sabe, esperando alguém.

Pouco depois o motorista avisou que o ônibus ia partir. Entrei e, através da vidraça, vi pela última vez, aquele vulto. Eu sabia que nunca mais encontraria a mulher, mas que ela me acompanharia para sempre na memória.

Nós somos feitos de momentos. Pequenos momentos que formam nossa alma, nossa vida. Mas não são apenas as coisas vistas, são também as coisas imaginadas... Quantas e quantas vezes imaginei cenas de encontros ou cenas de despedidas? Quantas vezes parei numa rua qualquer para observar uma criança brincando ou uma mulher grávida olhando uma vitrine?

A mulher grávida, como a mulher nua, mexe com minha ternura. Nada me parece mais sublime, mais triste que uma mulher grávida.

Os velhos solitários também me comovem. Eles, como os mendigos e os artistas, me fazem pensar em desencontros.

Vinícius de Moraes dizia que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontros pela vida”. E esses seres desencontrados são meus companheiros de viagem. Desta grande viagem que estamos fazendo.

São estes vultos que estão debruçados nas janelas, que estão dando adeus nas plataformas ou agradecendo aplausos num picadeiro qualquer, que me acompanham, para sempre.

Agora, escrevendo esta crônica, reflito: talvez um dia, quando embarcar no último ônibus compreenderei melhor o significado de uma rodoviária pobre ou, quem sabe, de uma janela aberta, mesmo distante.

Quem sabe neste dia convidarei aquela mulher triste para sentar-se a meu lado e trocaremos confissões e compreenderei que ela não é apenas memória, mas um ser vivo que palpita no mesmo ritmo da terra e me dá prazer?

Quem sabe, antes de partir, ela me agasalhará em seus seios mornos e com um sorriso bonito me dirá:

“Braz, boa viagem!”?

Quem sabe?



- Comentários sobre o texto  podem ser enviados, diretamente, ao autor:  brazchediak@gmail.com


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG


Direitos Reservados
É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.