Braz Chediak
QUEM SABE? |
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Com o frio cortante que tomou conta de nossa aldeia, ontem à tarde fui
a pé a um serralheiro num bairro pobre da periferia. As ruas estavam
vazias, apenas algumas crianças soltavam pipas, ou jogavam futebol com uma
bola de borracha. As janelas estavam todas fechadas, talvez por causa do
vento. O Armarinho, que vende brinquedos e produtos de plástico, que sempre
vi aberto, estava com as portas trancadas.
No interior, quando um
ponto comercial fecha as portas em pleno dia, logo vemos, pregada nela, uma
pequena folha A4 escrita a pincel: “Luto”. Mas ali não havia nada, nenhum
aviso. Na casa vizinha uma mulher abriu a janela e perguntei o que tinha
acontecido. Ela olhou para os fundos, certificando-se que ninguém a
escutava e contou-me: a filha da proprietária, de 16 anos, tinha engravidado e
fora expulsa de casa (está, agora, na casa da avó, em outra cidade). A
proprietária, que pertence a uma religião X, fechara as portas por vergonha.
Eu conhecia a menina de vista, de minha varanda a via passar todas as
manhãs, em direção à escola. Me chamava a atenção seu jeito de carregar os
livros sob as mãos cruzadas sobre o peito, como se os abraçasse.
Agora,
ali, parado diante daquela porta solitária, sinto sua falta, sinto pena
daquela mãe que massacra seus próprios sentimentos por ser contra uma coisa
tão natural. E me indago: Não seria melhor ela ter a filha em casa,
talvez cantando uma canção de ninar enquanto ela borda um enxoval colorido
para o neto ou a neta que virá? Não seria bom, daqui há alguns meses, ter
entre os braços uma criatura que é seu sangue e que lhe sorriria pela
proteção? Não seria melhor levar a criancinha para as ruas e mostra-la
orgulhosa: “É o filho, é a filha, de minha filha. É minha vida que
continua...”?
Amanhã é sábado. Como sou um velho enxerido, tenho
vontade de voltar àquela rua e conversar com a mulher. Dizer a ela que
tenho um neto. Que fiquei feliz no dia em que ele nasceu. Fiquei feliz
quando, na primeira vez que o vi ele me procurou com os olhos e sorriu. Que
fico feliz quando ele me abraça porque lhe dou um iogurte. Quando corre atrás
de sua cadelinha vira-latas e rola com ela na terra... Fico feliz quando
ele faz cara feia porque não lhe dou um sorvete... Fico feliz porque ele
descobre, dia a dia, o grande mundo em que vive e viverá. Porque nos
tocamos, nos aquecemos... Fico feliz porque vivemos.
Tenho vontade
de pedir a ela que acolha novamente a jovem. Que fique feliz, porque a
vida deve ser acolhida e reverenciada em todas as religiões. Dizer que
Deus está em sua filha, no ventre de sua filha, e que é assim e será assim por
todo o sempre. E isto é bom. Tenho vontade e... quem sabe?
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
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