01/11/2015
Ano 19 - Número 958


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Braz Chediak


Beleza gratuita


Da varanda de minha casa observo a cidade silenciosa, escurecendo.

Sou daqueles que têm a doença do anoitecer, isto é, que sente uma grande tristeza, uma grande angústia, o sentimento de finitude, quando começa a escurecer, e para me livrar deste sentimento, faço algumas fotos da paisagem. Mas imediatamente me indago por que quis fazê-las, já que a luz está ruim, não sairão boas.

É sabido que todos nós queremos prender o tempo, guardá-lo, ainda que em fotos imperfeitas, e não deixá-lo passar. Por nos sabermos mortais, temos a necessidade exagerada de permanência. Queremos ficar, prolongar os momentos como se eles nos ajudassem a prolongar a vida.

Claro, somos diferentes uns dos outros, ainda que pertençamos a mesma raça, a variada e bela raça humana, mas nos diferenciamos por coisas mínimas – ou máximas.

Alguns constroem palácios, que ruirão com o tempo. Outros, como Goethe, Shakespeare, Machado de Assis, Tom Jobim ou Guimarães Rosa, por exemplo, constroem monumentos eternos que esparramam suas belezas gratuita e generosamente.

Alguns, se entregam às religiões, à busca da imortalidade, seja ela nos Páramos longínquos ou numa reencarnação que pode estar perto de nós. Mas todos, quase sem exceção, queremos prolongar a vida, não percebemos que a morte é uma coisa boa, que é graças a ela que existe a renovação, o renascimento.

A eternidade física, se houvesse, seria monótona e amedrontadora. Seríamos como o Conde Fosca, criação de Simone de Beauvoir em TODOS OS HOMENS SÃO MORTAIS. Fosca, que viveu do século XIII até o século XXI, conheceu países, amou mulheres. Mas viu envelhecer e morrer estas mulheres, seus filhos e os filhos de seus filhos. Existe maior solidão que esta? Não sei. Mas sei que ele não foi feliz, faltava-lhe o sentido do transitório, da renovação. Uma das cenas mais belas do romance é quando Beatriz, uma de suas amadas, está morrendo e ele quer acariciá-la. Ela recusa, dizendo: “seu corpo me dá medo. É de outra espécie.” Sim, o corpo de Fosca era de outra espécie, era imperecível, não-humano.

Sérgio Milliet, na orelha da edição brasileira, nos diz: “Se não houvesse o efêmero que dá sua medida, o prazer transformar-se-ia em dor. O minuto que acaba torna belo o presente, valoriza-o, deixa-o na saudade. Com a eternidade, desapareceria também o encanto de nossas vidas. A morte, limitando nosso tempo, obriga-nos a tomar decisões: são múltiplos os caminhos. O destino é pois a soma de nossas opões. No dia a dia, traçamos o enredo de nosso próprio romance, na apaixonante espera do desenlace. Mas se não morremos, para que decidir. Aí está: a imortalidade é a morte da vida.”

O Conde Fosca não amou verdadeiramente a não ser a si mesmo, não percebeu que a própria transitoriedade do amor significa vida. É dessa transitoriedade seminal que tudo renasce, que a continuação se eterniza. A flor ama a abelha que a fecunda, a semente ama a chuva que penetra em suas entranhas, a mulher ama o homem, o homem ama a mulher e todos amamos, ainda que inconscientes, para que a morte seja o renascer.

Bobbio diz que a morte “nada mais é que o retorno à natureza, para onde confluem todas as coisas.”

Sim, e esta confluência, este encontro, se dá no OM, no grande e sagrado OM, o eterno retorno, o fim e o princípio, o encontro das pontas que formam o círculo.

Mas estou me estendendo e perdendo o espetáculo da noite que cai sobre a cidade. Os faróis dos carros e ônibus cortam as ruas, a população volta para suas casas. Brevemente haverá cheiro de comida, vozes de novelas, notícias nas TVs. Haverá gritos de crianças brincando, esperanças de jovens se preparando para o amor, velhos se preparando para dormir. Haverá também a fome e medo, encontros e desencontros, esperanças e desânimos, ternuras e crimes, nascimentos e mortes. Tudo isto faz parte da cidade. Faz parte desta coisa complexa que se chama vida e que a cada mônada muda de formato, cor, perfume...

E porque muda continuamente é bela, e por ser bela a estou observando, como quem observa uma paisagem gratuita vista da varanda.



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Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG


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