Braz Chediak
Beleza gratuita |
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Da varanda de minha casa observo a cidade silenciosa, escurecendo. Sou
daqueles que têm a doença do anoitecer, isto é, que sente uma grande tristeza,
uma grande angústia, o sentimento de finitude, quando começa a escurecer, e
para me livrar deste sentimento, faço algumas fotos da paisagem. Mas
imediatamente me indago por que quis fazê-las, já que a luz está ruim, não
sairão boas.
É sabido que todos nós queremos prender o tempo, guardá-lo,
ainda que em fotos imperfeitas, e não deixá-lo passar. Por nos sabermos
mortais, temos a necessidade exagerada de permanência. Queremos ficar,
prolongar os momentos como se eles nos ajudassem a prolongar a vida.
Claro, somos diferentes uns dos outros, ainda que pertençamos a mesma raça, a
variada e bela raça humana, mas nos diferenciamos por coisas mínimas – ou
máximas.
Alguns constroem palácios, que ruirão com o tempo. Outros,
como Goethe, Shakespeare, Machado de Assis, Tom Jobim ou Guimarães Rosa, por
exemplo, constroem monumentos eternos que esparramam suas belezas gratuita e
generosamente.
Alguns, se entregam às religiões, à busca da
imortalidade, seja ela nos Páramos longínquos ou numa reencarnação que pode
estar perto de nós. Mas todos, quase sem exceção, queremos prolongar a vida,
não percebemos que a morte é uma coisa boa, que é graças a ela que existe a
renovação, o renascimento.
A eternidade física, se houvesse, seria
monótona e amedrontadora. Seríamos como o Conde Fosca, criação de Simone de
Beauvoir em TODOS OS HOMENS SÃO MORTAIS. Fosca, que viveu do século XIII até o
século XXI, conheceu países, amou mulheres. Mas viu envelhecer e morrer estas
mulheres, seus filhos e os filhos de seus filhos. Existe maior solidão que
esta? Não sei. Mas sei que ele não foi feliz, faltava-lhe o sentido do
transitório, da renovação. Uma das cenas mais belas do romance é quando
Beatriz, uma de suas amadas, está morrendo e ele quer acariciá-la. Ela recusa,
dizendo: “seu corpo me dá medo. É de outra espécie.” Sim, o corpo de Fosca era
de outra espécie, era imperecível, não-humano.
Sérgio Milliet, na
orelha da edição brasileira, nos diz: “Se não houvesse o efêmero que dá sua
medida, o prazer transformar-se-ia em dor. O minuto que acaba torna belo o
presente, valoriza-o, deixa-o na saudade. Com a eternidade, desapareceria
também o encanto de nossas vidas. A morte, limitando nosso tempo, obriga-nos a
tomar decisões: são múltiplos os caminhos. O destino é pois a soma de nossas
opões. No dia a dia, traçamos o enredo de nosso próprio romance, na
apaixonante espera do desenlace. Mas se não morremos, para que decidir. Aí
está: a imortalidade é a morte da vida.”
O Conde Fosca não amou
verdadeiramente a não ser a si mesmo, não percebeu que a própria
transitoriedade do amor significa vida. É dessa transitoriedade seminal que
tudo renasce, que a continuação se eterniza. A flor ama a abelha que a
fecunda, a semente ama a chuva que penetra em suas entranhas, a mulher ama o
homem, o homem ama a mulher e todos amamos, ainda que inconscientes, para que
a morte seja o renascer.
Bobbio diz que a morte “nada mais é que o
retorno à natureza, para onde confluem todas as coisas.”
Sim, e esta
confluência, este encontro, se dá no OM, no grande e sagrado OM, o eterno
retorno, o fim e o princípio, o encontro das pontas que formam o círculo.
Mas estou me estendendo e perdendo o espetáculo da noite que cai sobre a
cidade. Os faróis dos carros e ônibus cortam as ruas, a população volta para
suas casas. Brevemente haverá cheiro de comida, vozes de novelas, notícias nas
TVs. Haverá gritos de crianças brincando, esperanças de jovens se preparando
para o amor, velhos se preparando para dormir. Haverá também a fome e medo,
encontros e desencontros, esperanças e desânimos, ternuras e crimes,
nascimentos e mortes. Tudo isto faz parte da cidade. Faz parte desta coisa
complexa que se chama vida e que a cada mônada muda de formato, cor,
perfume... E porque muda continuamente é bela, e por ser bela a estou
observando, como quem observa uma paisagem gratuita vista da varanda.
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
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