20/05/2011
Ano 14 - Número 736
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
MÚSICA DO LIXO
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“As gavetas de um velho guarda-roupas de araucária se uniram ao pedaço de
uma mesa de imbuia. Juntas, sob a forma de um violino, agora tocam
Beethoven e Bach.”
Assim começa a reportagem de Vanessa Correa, na Folha de São Paulo
(08/5/2011), onde ela nos mostra um pouco da história de David Rocha,
jovem de 20 anos que, apaixonado pela música, busca no lixo a madeira para
construir seus instrumentos.
“O tampo desse violão clássico é de abeto, uma madeira da Europa parecida
com o pinho. Veio de uma caixa de bacalhau da Noruega que eu peguei no
Mercadão”, explica, orgulhoso de seu trabalho.
A reportagem de Vanessa Correa é simples como a alma do artista. E por
isto mesmo, por esta simplicidade, nos leva a reflexões sobre nosso povo
que, como equilibrista de arame farpado, sabe encontrar a arte até mesmo
no lixo.
David é um exemplo. “Com a madeira que encontra já construiu um alaúde, um
cavaquinho, um bandolim, uma rabeca e outro violão, barroco.” Trabalha
todos os dias e se sustenta com uma bolsa de R$ 450,00 concedida pela
Fundação Tide Setúbal, de São Miguel Paulista.
Um belo exemplo que me leva a compará-lo à atitude da TOTAL ALIMENTOS que
também, com responsável generosidade, mantém a BANDA TRICORDIANA, projeto
sócio/cultural onde 40 jovens carentes, em Três Corações, MG, se formam
musicalmente e, quem sabe, um dia poderão se apresentar com alguns dos
instrumentos feitos por este rapaz que é um exemplo da criatividade da
nossa gente.
Se o sonho de David é singelo: “conhecer a Sala São Paulo, onde tocam
as melhores orquestras da cidade”, sua realidade é bela: Cria,
trabalha, não faz corpo mole num país onde, de acordo com o professor
Márcio Pochmann, do curso de Economia da Unicamp, autor do livro A
BATALHA DO PRIMEIRO EMPREGO, “Os jovens estão prolongando sua vida
escolar por falta de oportunidade de emprego.”
E aqui, diante deste absurdo, abro um parêntese para dizer que a OIT
(Organização Internacional do Trabalho) acredita que o número de
desemprego entre os jovens será tão alta nos próximos anos que já os
chamou de “Geração Perdida”. Infelizmente, diferente daquela GERAÇÃO
PERDIDA a que pertenciam Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Willian
Faulkner e tantos outros que, também buscando o material de seu trabalho
(escrever) no lixo, no submundo do jazz, nas feridas da guerra ou na
deterioração das famílias sulinas dos Estados Unidos, construíram um
painel magnífico da América de seu tempo.
Fecho o parêntese, afirmo que o desemprego entre os jovens é culpa de
nossos “políticos”, em grande parte corruptos e incompetentes, e volto ao
jovem David: Como os bons violinos fabricados no Brasil são feitos com
jacarandá-da-bahia, cujo corte está proibido, sofremos com a falta de
material. Falta esta agravada pelo tempo que é preciso esperar para a
madeira, seja ela de corte permitido ou importada, chegar ao ponto
necessário de amadurecimento/envelhecimento.
“A vantagem de ele usar as madeiras do lixão é que elas passaram pela
prova do tempo, não vão mudar mais suas características”, diz o luthier
Fábio Vanini.
Quantos benefícios nos traz este jovem que compreendeu que a Cultura, com
C maiúsculo, é uma eterna busca, é renovação, está em todos os lugares, e
teve ousadia: montou no lombo do Rocinante e partiu para sua bela aventura
de transformar em beleza o que era lixo.
Me entristeço e termino a crônica. Ah, quanto lixo nós temos. Como
precisamos de alguém que saiba escutar a sua música. Ah, como andamos
precisados de Davids.
(20 de maio/2011)
CooJornal
no 736
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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