13/03/2010
Ano 13 - Número 675
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
DOBRADINHA À MODA DO PORTO
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Encontro-me com o Beto (Roberto Iemine) e,
como sempre acontece, conversamos sobre cinema e, principalmente, livros.
Como sou um aficionado pela literatura policial, o assunto foi Manuel
Vázquez Montalbán, escritor espanhol, nascido em Barcelona em 1929 e
falecido recentemente.
O mestre, hoje conhecido e reconhecido no mundo inteiro, teve uma vida
rica e intensa: foi jornalista, membro do Partido Comunista Catalão,
ensaísta, panfletário, poeta, autor de romances experimentais e,
principalmente, de uma série de romances policiais premiados na França,
Alemanha, Itália, etc., etc.
Estes romances têm como personagem principal o detetive Pepe Carvalho, um
ex-comunista e ex-agente da CIA que costuma preparar seus pratos
requintados acendendo o fogo com livros. É, isto mesmo: Ele queima livros.
E com um prazer de quem já degusta o prato. Pepe Carvalho é um cínico, um
cômico, um trágico. Através dele Montalbán nos mostra uma Barcelona bela e
sórdida, um mundo absurdo em ações e pensamentos.
Aliás, o autor, como personagem, é um apreciador de boa mesa, bons vinhos
e belas mulheres. Seu gosto – e respeito – pela culinária é tanto que num
de seus romances Pepe Carvalho, enquanto investiga um crime, anda por
Barcelona chateado porque não existe mais a deliciosa dobradinha
artesanal, feita por mãos de artistas, antes encontrada em todos os
lugares onde a comida era tratada como Arte. Agora, ele vem enlatada e
isto leva o personagem à raiva e à análise de uma globalização que comete
a desfaçatez de assassinar o que há de mais sagrado na cultura de um povo.
Aliás, a dobradinha é tão cultuada em alguns países europeus que Fernando
Pessoa dedicou a ela um belo e enigmático poema:
“Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo/serviram-me o amor
como dobrada fria/disse delicadamente ao missionário da cozinha/que a
preferia quente/que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
“Impacientaram-se comigo/nunca se pode ter razão, nem num restaurante/não
comi, não pedi outra coisa, paguei a conta/e vim passear para toda a rua.
“Quem sabe o que isto quer dizer?/eu não sei, e foi comigo.../Sei muito
bem que na infância de toda gente houve um jardim/particular ou público,
ou do vizinho/sei muito bem que brincarmos era o dono dele/e que a
tristeza é de hoje/sei isso muitas vezes, mas se eu pedi amor, porque é
que me trouxeram/dobrada à moda do Porto fria?/não é prato que se possa
comer frio/mas trouxeram-mo frio/nunca se pode comer frio, mas veio frio.”
O prato é tão importante para o povo d’além mar que quando, em 1952, o
transatlântico Vera Cruz, em sua viagem inaugural, aportou em Santos o
fato foi considerado um acontecimento político, social e cultural
grandioso. À bordo, “vinham dezenas de intelectuais – escritores,
historiadores, cantores, etc. – e no cardápio do almoço constavam:
acepipes e... dobrada à moda do Porto.”
Mas nós estamos no Brasil, numa pequena cidade do interior de Minas, num
anoitecer nublado e, não fosse o papo agradável, propício à cama e à
leitura. Então, por que pensar em uma comida folclórica, difícil de
encontrar? A resposta é simples: Os brasileiros descendemos todos de
imigrantes. Herdei de minha mãe, filha de português, o gosto pela dobrada
à moda do Porto. E porque senti fome e o Beto me informou: “Braz, aqui tem
dobradinha!”
Chamei o missionário da cozinha e pedi o prato. Ele veio quente e
delicioso. Uma iguaria de dar água na boca do mais exigente gourmet. E,
enquanto comia, compenetrado e deliciado, me veio à cabeça Manuel Vázquez
Montalbán e Fernando Pessoa. Propus ao Beto que brindássemos a eles, pois
tinha certeza que, lá do alto, estariam me invejando. Tim-tim,
companheiros, e já que vocês estão aí no céu, peça a São Lourenço,
padroeiro dos cozinheiros, que preparem uma para vocês. Qualquer coisa,
diga para ele pegar a receita no RESTAURANTE VINTÉM, no Edifício King’s
Tower, aqui em Três Corações. E bom apetite.
(13 de março/2010)
CooJornal
no 675
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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