05/12/2009
Ano 13 - Número 661


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



OS SAPATOS DE HEMINGWAY


 

São 3:15 da manhã e lendo um miniconto de Hemingway, “vende-se: sapatos de bebê, nunca usados” sinto uma estranha curiosidade que faz aumentar minha insônia: o que terá acontecido à criança para que seus sapatos sejam vendidos antes de usá-los? Por que a mãe, ou aquele que colocou o anúncio num jornal qualquer queria vendê-los?

As possibilidades são muitas, mas o que me tocou é a solidão que existe na pequenina história de seis palavras, quase um poema. Uma solidão que se insinua e, pouco a pouco, se alastra como uma infiltração numa parede velha.

Diretor de cinema, acostumado às imagens, tento visualizar a cena mas só consigo reproduzir, mentalmente, o final de um filme de Carlitos: um pobre homem se afastando num cais desconhecido, de costas para o público, consciente que está só, irremediavelmente só, até que nova aventura surja à sua frente.

A vida é feita de símbolos e, para mim, o cais, as estações ferroviárias e rodoviárias representam o que há de mais solitário em paisagem. É ali que ocorrem os encontros, mas também é ali que se dão os desencontros e as partidas.

Como memória puxa memória recordo-me de uma viagem que fiz a Recife há muitos anos. Era noite e, numa destas paradas obrigatórias, num lugarejo à beira da estrada, vi uma jovem debruçada na janela de um pequeno hotel. Pelos seus gestos, pela maneira que olhava o ônibus e a nós, passageiros, senti que sonhava em partir e talvez ficasse naquele mesmo hotel por toda vida. Seria uma prostituta? Uma estudante sonhadora oprimida por um lugarejo onde a vida de cada um é vigiada, esmagada, perdida?

Não importa, quem estava ali, era um ser humano. Um ser igual a mim, que merecia meu respeito e minha ternura. E foi com respeito e ternura que senti o ônibus se afastar e ela, num último gesto, nos seguindo com o olhar, reprimindo um adeus ou um soluço, como um prisioneiro quando vê os que são livres partirem.

No romance Ana Karenina, de Tolstoi, a infeliz personagem, casada com um homem medíocre, tenta se libertar tornando-se amante do Conde Vronski. É um amor às escondidas mas que, como em toda cidade pequena, logo se esparrama em forma de boatos. E quando Vronski cai do cavalo, durante uma competição, ela não se contém e levanta-se aflita. Desabafa sua angústia com um grito, tornando público o que antes era cochichado, e se tornando condenada pela moral provinciana. A liberdade, os sentimentos ardentes de uma criatura que nasceu para ser amada como mulher e como fêmea incomodam a todos e nada mais lhe resta senão a morte. Ana Karenina suicida-se jogando-se entre os vagões de um trem. Talvez o mesmo trem em que conhecera seu grande amor.

Deixo a divagação, volto ao miniconto de Hemingway e me inquieto: Será que compraram os sapatinhos e depois descobriram que a gravidez era falsa? A criança teria morrido no parto? A mãe teria abortado? O pai, num gesto de decepção ou vingança, estaria se livrando de objetos de um filho alheio ou não desejado? Estariam passando por tanta dificuldades que precisavam dispor da mais barata peça do vestuário de um filho que acabara de nascer?

Não sei. Se descobrir, a razão do pequeno conto deixa de existir. Por isto, tento me livrar do incômodo pensamento ouvindo o primeiro sabiá, este pássaro madrugador, cantar na beira do Rio Verde. Mas o pensamento volta, como um iô-iô: A criança existiu? A mãe existiu? O homem que colocou o anúncio existiu? Não sei. Mas sei que existo: ontem, quando cheguei em casa, meu cachorro me reconheceu.




(05 de dezembro/2009)
CooJornal no 661


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com 

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