03/10/2009
Ano 12 - Número 652
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
POR ENTRE OS GUIZOS FALSOS DA ALEGRIA
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Estava indo para casa, ainda com o espírito de comemoração
pelo aniversário da cidade, quando vi, sob a marquise da padaria da
esquina, um menino magrinho, quase nu, dormindo enrolado numa bandeira
brasileira de papel. Ao mesmo tempo, ouvi na TV de algum vizinho a notícia
de um “crime” ocorrido no dia 16 de setembro numa cidade do interior de
São Paulo e só agora divulgado: um jovem de 21 anos confessou ter invadido
a igreja São João Batista, em Orlândia, e furtado hóstias por estar com
fome.
O administrador da diocese reclamou dizendo que “Para nós, as hóstias são
o próprio corpo do Senhor Jesus. É um valor incomensurável, não temos como
medir”.
O rapaz preferiu roubar a pedir esmolas e me levou a pensar na música de
Zé Dantas e Luís Gonzaga, cuja letra diz: “Mas doutor, uma esmola para um
homem que é são/ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.
A que conclusão podemos chegar?
Se examinarmos com profundidade constatamos que os dois fatos atingem um
dos mandamentos mais profundos da igreja católica: “Vesti os nus, dai de
comer a quem tem fome, dai de beber a quem tem sede”, mas atinge, também,
o direito de propriedade e outros tantos preconizados no mundo capitalista
e globalizado.
O sono do menino não nos incomoda, estamos acostumado com a cena. O ato do
estudante nos dá medo. Nós não temos hóstias, mas temos um belo estoque de
alimentos em nossas geladeiras e muitas garrafas de vinhos na adega.
Num momento em que o Brasil descobre petróleo na camada pré-sal, é tomado
pela alegria da classificação na copa do mundo, e nosso presidente diz aos
quatro ventos que vamos bem, obrigado, ainda vemos, pela TV, rostos
famintos no nordeste, na Amazônia e, se prestarmos atenção, até aqui em
nossa pequena Três Corações, na nossa rua, sob nossas marquises e narizes.
Uma incongruência? Sim. O Brasil, com toda sua riqueza e bom humor, é um
país onde a desigualdade é das maiores do mundo. Onde o subdesenvolvimento
ainda nos puxa para baixo, não nos deixa levantar vôo em direção à
libertação total.
“Um homem com fome não é um homem livre”, nos ensinou Adlai Stevenson,
quando candidato à presidência dos Estados Unidos. Tinha boas intenções e,
dizem, era um político honesto. Talvez por isto não tenha sido eleito,
perdendo duas vezes para Einsehower.
O evangelista Mateus prega que são “bem aventurados os que têm fome e sede
de justiça, porque eles serão saciados”. Sei não, pode ser que sejam
saciados no outro mundo porque aqui o buraco é mais embaixo. Para nossos
políticos, que deveriam enfrentar o problema com energia, a fome alheia
não faz mal nenhum. Muito pelo contrário. É com promessas de pão e circo
que eles se elegem. Então é melhor deixar o povo na ignorância, na
miséria, e seguir o lema de “enfraquecer para dominar”, já que, depois de
eleitos, não nos dão trabalho para que possamos ganhar o pão e aplaudirmos
o circo.
No século passado, na década de 60, Moacir Franco, vestido de mendigo,
cantava a modinha: “Êi, você aí/me dá um dinheiro aí/me dá um dinheiro
aí/não vai dar?/não vai dar não?/ você vai ver/ a grande confusão/eu vou
fazer/bebendo até cair/me dá, me dá, me dá/ me dá um dinheiro aí”.
O mendigo, sabendo que os mais abastados não gostam de confusão, não
querem que a miséria alheia atrapalhe sua paz. A ameaça poderia dar certo
e ele ganhar alguns trocados e, também em paz, tomar sua pinga e sambar em
algum terreiro escondido. Claro, a paz, como tudo, tem um preço. Mas ela
está ameaçada. De um lado vemos o desemprego, o sucatear de nossas
escolas, crianças famintas paradas nos faróis fazendo malabares para
ganhar um trocado com o qual comprarão o crack que as levará ao crime e à
morte.
A Viagem mental é longa e triste, mas volto a Três Corações, ao menino
dormindo sob a marquise, enrolado na bandeira e em meus ouvidos chega a
voz de Castro Alves: “E existe um povo que a bandeira empresta/pra cobrir
tanta infâmia e covardia/e deixa-a transformar-se nesta festa/em manto
impuro de bacante fria/Meu Deus, meu Deus, mas que bandeira é
esta/....Auriverde pendão de minha terra/que a brisa do Brasil beija e
balança/estandarte que a luz do sol encerra/e as promessas divinas da
esperança/tu que, da liberdade após a guerra/foste hasteado dos heróis na
lança/antes te houvessem roto na batalha/que servires a um povo de
mortalha!”
Viro o rosto para não olhar o menino. Tiro do pensamento o ladrão de
igreja e sua fome. Afinal, hoje é dia de festa. Parabéns Três Corações.
Feliz aniversário.
(03 de outubro/2009)
CooJornal
no 652
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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