09/05/2009
Ano 12 - Número 631
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
RASTROS NAS GAVETAS
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Sempre tive a mania de guardar pequenas anotações, frases, poemas, etc.,
feitos em pedaços de papel. Com o passar dos anos, gavetas, estantes e até
armários ficaram abarrotados destas inutilidades, dificultando a limpeza
que, por mania, não deixo ninguém fazer e planejo realizá-la um dia. Mas
hoje, aproveitando a fresca que traz o vento do anoitecer, tomei a
decisão: Jogar tudo fora.
Começo pela mesa de trabalho. Abro a primeira gaveta, pego um pedaço
rasgado de jornal onde está escrito um número de telefone. De quem será?
Não sei. Sinto tentação de ligar e perguntar, mas a tarefa ainda está
começando e preciso terminá-la. Apanho sobre o guarda-roupas uma caixa de
papelão e guardo o papelzinho. Mais tarde ligarei.
Em seguida desdobro uma folha de caderno com um poema de Tânia Melo.
Releio seus versos: “Tão só, no último banco,/o arlequim remendado/tem a
roupa colorida,/em tons tristes, desbotados./Sustenta as dores nas
curvas,/disfarçando o amor que salta/do peito, descompassado./Pois,
sentados logo à frente,/vão, juntinhos, abraçados,/sua doce colombina/ e o
pierrô, apaixonados”. Guardo também a folha de caderno. É muito bonito o
poema.
Num maço de cigarro amarelado pelo tempo, uma frase de Novalis: “É lícito,
na terra, conhecer a felicidade. Soube-o a primeira vez em que fixamente
te olhei”. Foi a frase que escrevi, como dedicatória, no primeiro livro
que dei a uma mulher que amei.
Nosso amor terminou, mas ela ficou para sempre nos edifícios, nas mesas
dos bares, no sabor de uma pizza do Raul - que nem sei se ainda existe -,
nas folhas dos oitis sobre as calçadas, nos sons das ruas, num maço de
cigarro amarelado que não consigo jogar fora.
Penso nela e leio, em outra folha, um trecho de Miller falando de sua
separação de Mona: “Ela não se lembraria de que em certa esquina parei
para apanhar o seu grampo de cabelo ou que, quando me abaixei para amarrar
os cordões de seus sapatos, observei o lugar em que seu pé havia pousado,
e que aquilo, ali ficaria eternamente, mesmo após as catedrais terem sido
demolidas e toda a civilização latina ter sido arrasada para sempre.”
Quanta grandeza neste pequeno parágrafo. Quanta semelhança com o que senti
e carreguei por tanto tempo! Mas não posso me deter em amores desfeitos,
meus ou alheios, e continuo.
Pouco a pouco vou lendo frases, anotações banais lembrando que é preciso
pagar a conta de luz, consertar uma torneira, etc. mas que me levam a
outras recordações e vou transferindo-os para a caixa de papelão. Será
este o destino dos velhos? Guardar e recordar coisas inúteis? Talvez não.
Basta um fósforo e tudo se queimará. Mas não queimamos. Não matamos as
lembranças.
“Só é bom aquilo que não morre, e para nós, só não morre o que morre
conosco”, diz D’Annunzio no último pedaço de papel que leio. Guardo também
ele, devolvo tudo à gaveta e fecho-a. Não abrirei as outras. Abri-las é
fazer revelações e, como cineasta, aprendi que só se revela em câmaras
escuras.
Escuras como os pequenos rastros que ficaram e que o vento da noite começa
a apagar.
(09 de maio/2009)
CooJornal
no 631
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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