28/11/2008
Ano 12 - Número 609


ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK

 

 

Braz Chediak



UM BALANÇO, UM PIÃO

 

Navegando pela Internet, descubro referências ao filme VIVER, de Akira Kurosawa, que assisti num “cinema de arte” no Rio de Janeiro, na década de sessenta. Ele me causou uma impressão tão forte que, terminada a seção, resolvi transgredir completamente as Leis, mesmo já estando vivendo fora delas.

Mas sobre que é este magnífico filme? É sobre a história de um velho que passou a vida trabalhando como funcionário público – sua única função é carimbar documentos – e um dia, sentindo uma pequena dor, vai ao médico e recebe sua sentença: está com o estômago tomado pelo câncer e tem apenas 6 meses de vida.

A princípio fica bestificado, vaga pelas ruas fazendo a indagação que, acredito, todos nós fazemos diante de tal situação: - Mas por que eu? – Tem início, aí, sua verdadeira história – a bela história que todos nós, seres humanos, deveríamos viver -. Começa a freqüentar bares, festas, boates, buscando os prazeres da vida.

A família o acusa: Ao invés de pensar no futuro do filho, está gastando seu dinheiro com uma “mulherzinha” que conheceu num cabaré, ou boate (uma clara alusão a O LOBO DA ESTEPE, de Hermann Hesse) e pela qual se apaixona. É o outro lado da vida, que também ele nunca havia vivido.

Passando por um lugar sujo – uma estação de tratamento de esgoto a céu aberto -onde algumas crianças brincam, ele se lembra que um dos papéis que carimbou era uma reivindicação de várias mulheres que queriam a retirada da tal estação de tratamento e, em seu lugar, a construção de um parque. Vai apressado à repartição, procura e acha o tal pedido. Dependia dele, de um pequeno gesto ousado de sua parte, a construção do parque, a felicidade de milhares de crianças. Mas ele não transgrediu e arquivou o sonho, a felicidade de muita gente que poderia se beneficiar do local para o lazer, o brinquedo, etc.

Tentando se redimir, percorre repartições públicas pedindo que realizem o pedido das mulheres e, pouco a pouco, vai descobrindo o absurdo da burocracia, da vida daqueles que vivem conforme o regulamento sem ultrapassar uma linha sequer das leis.

A história é longa e bela. O personagem passa, naquele pedaço de tempo, por medos, de sonhos, amor, dúvidas e todos os sentimentos pelos quais passamos – ou deveríamos passar – para compreender o verdadeiro significado da vida. No final ele consegue a construção do parque e, ainda que a bela mulher tenha sido um instante, ainda que todo seu passado fora um carimbo e folhas de papéis, assenta-se num dos balanços e se embala lentamente, sob a neve que cai, cantando, como uma criança, e morre. Aparece a palavra fim.

Mas por que me impressionei tanto? Porque via, a meu lado, milhares de pessoas vivendo a mesma vida daquele personagem e não percebendo. Ouvia, diariamente, pessoas dizendo que: “- Quando meus filhos estiverem criados, largo tudo e vou fazer isto e aquilo.”. “Quando me aposentar vou me dedicar vou escrever um livro, fazer um filme...”, etc., etc.. Mas, com o passar do tempo, o discurso mudava: “Ah, agora estou muito velho para começar”. “Ah, com a idade em que estou não adianta mais!”.

São pessoas que viveram – ou vivem – uma vida incompleta, sem aventuras, sem história. E, o mais impressionante é que muitas morrem sem se dar conta disto. Ainda agora, um amigo que sempre quis fazer cinema – e não fez - me telefona do Rio para dizer que se operou de um tipo raro de câncer e que, talvez, não viva muito tempo. Como trabalhou a vida inteira num instituto de pesquisa, falou sobre preços, inflação, etc. Nem uma vez me disse “Braz, estou chegando ao fim e vou viver a vida”. Nem por um instante me disse: “como não tenho mulher, nem filhos, vou deixar meu apartamento, meu carro, minha bicicleta, para crianças carentes, para velhos desamparados”. Não. Estes bens materiais, que são os menores bens que existem sobre a terra, vai deixar para a irmã que mora em Alagoas – ele me disse. É uma maneira, uma triste maneira de continuar a posse, o acúmulo de nada.

As crianças de minha geração – cheias de sonhos e esperanças – recitavam nas salas de aulas, nos corredores do velho Colégio Estadual Américo Dias Pereira um poema de Francisco Otaviano que retratava com perfeição nossas inquietações: “Quem passou pela vida em brancas nuvens/e em plácido repouso adormeceu/quem não sentiu o frio da desgraça/quem passou pela vida e não sofreu/foi espectro de homem, não foi homem/só passou pela vida... não viveu.”. Mas... e as crianças de hoje? Elas sonharão, lutarão, sentirão as tempestades, a brisa, o canto das sereias? Não temerão o desconhecido, ousarão navegar, enfrentarão os mares das tormentas e descobrirão novos mundos?

Paro a crônica para beber um café na padaria da esquina. Quando volto, vejo um velho olhando o Rio Verde que passa. Tem um olhar atônito, como se descobrisse que, perto dele os terrenos estão vazios, sem um único balanço onde sentar e cantar uma canção suave, uma canção de adormecer.

Do outro lado da rua algumas crianças brincam. Uma delas enrola com vigor um barbante num pião de madeira e o atira na calçada. O pião gira, gira, gira...


 
(28 de novembro/2008)
CooJornal no 609


Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com 

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